Trufaut, revisited
Sob o aspecto da fábula (isto é, como diz Prof. André Setaro, da narrativa que se desenvolve, do enredo que é contado) J’ai tué ma Mère ficaria meramente no plano do confessionalismo adolescente bem-feito, algo entre Goethe e Musset, acima um pouco do Legião Urbana de Renato Russo – ou, para ser justo, e graças a sua economia formal, estaria a altura dos versos de Cazuza, e nada mais. Ocorre que é na estória e não na fábula (isto é: no modus contandi, na estrutura metalinguística que todo filme vela e revela e através da qual a fábula comparece) que Xavier Dolan mostra-se um promissor jovem mestre – e, neste sentido, seu longa de estréia é como O Fabuloso Destino de Amelie Poulain: um filme que será adorado por cinéfilos por motivos que seus fãs não-cinéfilos nem se apercebem; e adorado por não-cinéfilos naquilo que seus fãs cinéfilos detestariam, por vulgaridade.
Amelie Poulain é adorado por seus fãs leigos (o cinéfilo é o clérigo da Religião da Luz) por seu clima onírico e leve. Nem desconfiam a homenagem que há a estética teatralizante do anti-cinema de Sacha Guitry desde o título, e toda deferência que Jean Pierre Jeunet faz ao Realismo Poético da Pathé dos anos 1930, em especial ao díptico de Marcel Carné (Boulevard do Crime / Crianças do Paraíso) e a toda a magistral obra de Jean Vigo (tanto Zero de Conduta quanto Atalante) e Jean Renoir e René Clair (em especial seu primeiro longa sonorizado, Sob Os Tetos De Paris). Assim, Amelie Poulain é um filme a um só tempo sofisticado e tolo. Parafraseando Luis Buñuel a respeito de Metrópolis de Fritz Lang, poderiamos dizer que são “dois filmes, um dentro do outro, que não se misturam, como um casaco de duas faces”.
Com Eu Matei Minha Mãe não acontece exatamente da mesma forma, porque sua escolha temático-fabulatória implica na escolha formal que se fará – enquanto a obra de Jeunet poderia ter escolhido qualquer tema para usar uma roupagem pré-Guerra. E não se pense que o tema é o conflito do adolescente homossexual com sua mãe solteira – esta é apenas uma modulação, fundamental sem dúvida, do tema maior. E seu tema maior é uma reedição do mito fundador do cinema contemporâneo: a pseudo-autobiografia de François Trufaut.
Seu tema é fundamentalmente o do adolescente desajustado, intelectualmente precoce, e de família esgarçada, que só acha redenção numa arte ao mesmo tempo de um século antes (literatura, pintura) e do porvir (o fotograma, no caso de Antoine Doinel, o digital no caso de Hubert da película em questão), erudita e popularesca: o cinema. Mas, isto só fica evidente pelas escolhas formais, da estória e não da fabula, que Dolan faz: a referência a Jackson Pollock, a literatura do início do romantismo francês e a Jean Genet, o cabelo e gestual ao modo de Warren Beatty em Clamor do Sexo, a profusão de imagens de James Dean e Jeane Moreau – coisa que o gostador de filmes jamais perceberá, mas o cinéfilo devoto reconhece como a uma oração gregoriana. A relação entre as duas obras é tão clara que a cena final de ambos se dá no mesmo cenário: em Os Incompreendidos, de Trufa, com Jean Pierre Leaud correndo sem rumo por um descampado a beira-mar; no filme de Dolan, imagens dele como criança fazendo o mesmo, só que acompanhado da mãe, e depois ele já adulto, sentado num rochedo ao lado da mesma.
Diferente de Doinel, contudo, Hubert não é uma criança perdida de uma mãe que pouco lhe dá atenção e passa mais tempo com amantes ou vagando desempregada; nem tem aquela heterossexualidade sempre em descoberta, sempre acidentada e da ordem do malogro, que o alter-ego de Trufaut tem. Ao alter-ego de Xavier Dolan não há dúvidas sobre seu desejo (embora haja sobre seu gozo), e sequer sua homossexualidade é uma questão; antes de ser uma criança abandonada, largada involuntariamente as ruas de Paris, é um menino mimado de subúrbio. É um menor ou maior que o outro, em escala de valor moral? Não creio. Importa antes saber que um e outro nos mostram que a Era que criou a Adolescência também criou a única tecnologia que nos pode fazer suportá-la e superá-la: o cinematógrafo e sua contraparte, a sala escura.
Afinal, nos diz Jean-Luc Godard em seu último filme assistível (Elogio do Amor de Qualquer Coisa): “A verdade é que não existem adultos”.