CycleChic Pai D’Égua!
“Não imagina , o resto do Brasil, a cidade cosmopolita que é Belém do Grão-Pará”
Euclydes da Cunha
Longe de parecer a capital de seu enorme estado agrário, a Metrópole Amazônica é isto: cidade majestosa e imponente, cheia de arranhacéus art-decó, e a mais bela arquitetura neoclássica que já vi. Um neoclássico mastodôntico e amazônico, dir-se-ia de dimensões barrocas (no entanto, leve) se não fosse o fato de que em nada é opressivo.
Para mim, bahiano reconvexo praticante, é difícil de admitir: o Pará tem a melhor, mais rica, mais requintada culinária do país. Se na Bahia o gengibre, o dendê, o leite de côco subvertem a hierarquia social, e fazem a nobreza do Benin servir a mesa da burocracia lusitana a 3 séculos, na Estrela do Norte a culinária não precisa se prender a tradições. Reduzida a sua condição de ingredientes, pode ser reinventada a vontade; rica em temperos sinestésicos (a anestesia do jambú, a dupla densidade do tacacá no tucupí, a textura amanteigada de frutas como o murici), é leve e ao mesmo tempo enebriante.
Calçadas largas, arborização ostensiva (que faz as aléias do Rio de Janeiro e de Recife parecerem arbustos), com enormes e belíssimas praças, Belém é a Bélle-Epóque equatorial. Vem disso a base para seu discreto, porém eficiente e preciso, sistema cicloviário: suas avenidas, embora largas, são quase sempre de mão única; sem viadutos, com todos os cruzamentos em nível, mantém baixas e seguras velocidades máximas (quase nenhuma via permite 60km/h) ou médias (dificilmente se alcança 40km/h). Isso permite que praticamente todas as vias sejam fartamente compartilhadas entre carros, ônibus e bicicleta, sem caos e quase sem atrito de parte a parte.
É verdade que se pode alegar que o uso de bicicletas como meio de transporte na Capital Imperial do Norte se dá por sua população ser pobre, e a cidade ser plana. Vai aí uma meia-verdade: há pequenos, mas significativos, aclives e declives em Belém – o que não ocorre em Recife, chapada e retilínea, que também tem bom uso de bicicletas e bom sistema cicloviário, aquém contudo do paraense.
(Pese-se o fato de que Belém tem o pior sistema de ônibus de todo o país. Para não dizer que tudo é ruim, eles têm sinalização de destino e linha nas laterais – o usuário não precisa correr até a frente para enxergar. Mas não há diferenciação entre linhas coletoras e distribuidoras – todas são bairro a bairro; cartão de integração, nem pensar!; e estações de transbordo é coisa que por lá nunca se viu).
Meia-verdade que também comparece em relação a faixa de renda. Se é verdade que o carioca da zona sul e o mameluco de CasaForte tende mais a usar bicicleta como transporte (e deixar o carro em casa) do que o belemense de Nazaré, é também verdade que a população usuária em Belém o faz com uma elegância sem par – comum é se ver mulher nas garupas, de carona, não raro bem-vestidas, eventualmente com sombrinhas para proteger do sol, quase sempre de lado e pernas cruzadas.
De tal forma há uma cultura da bicicleta como transporte em Belém que ao menos dois taxistas me disseram estarem construindo bicicletas chopper ou quadriciclos para irem a atividades de lazer com suas famílias nos fins de semana. Para eles é claro que dirigir um carro é um trabalho remunerado, e não vêem nisso nenhum status ou glamour em especial. Mas em construirem suas próprias bicicletas, que comportem também seus entes mais próximos, sim.
Além disso, a cidade é corretamente adensada: sua verticalização de luxo está ocorrendo a apenas 2km do porto e a 3km do Centro Histórico; quase todas as ruas são multi-funcionais: onde há residência há, logo perto, bares de charme (e não mero boteco), farmácia, padaria, órgão público, empresas. A multi-utilidade se dá em qualquer bairro, rico ou pobre, nobre ou proletário, aumentando largamente sua usabilidade pedestre. As calçadas, aliás, além de largas têm boa sinalização para deficientes visuais (piso táctil) em quase todas as ruas por que passei.
Se é transporte de pobre, por que o Parque Florestal Mangual das Garças, onde fica um dos mais sofisticados restaurantes de alta gastronomia da região norte, reservaria um bicicletário amplo, visível, e em local nobre do estacionamento de lá, eliminando inclusive duas vagas de automóveis?
Bicicletários aliás são comuns, quase sempre neste padrão de qualidade ou próximo disso, e muito usados, em praticamente qualquer órgão público ou estabelecimento privado: no Pólo Joalheiro, em mais de um museu, em farmácias, na Estação das Docas (local que na verdade funciona como um enorme shopping, mais ou menos turístico mas muito frequentado pela classe média de lá).
Quer dizer que o CicleSystem TecnoBrega foi feito apenas com redução de espaço e velocidade para carro? Não há ciclovias?
Sim, há, mas poucas e precisas. São duas grandes segregadas, mas de segregação suave (com tacão, permitindo ao automóvel entrar nela se necessário, e não com murada) que se torna compartilhamento em faixa nos trechos em que há intersecções de viaduto (presentes apenas na saída para o Aeroporto).
Principalmente, são ciclovias que claramente não se prestam a “ir até elas com a bicicleta na mala do carro e lá passear”: não ficam em nenhuma zona de maior interesse estético ou de lazer – uma liga o Aeroporto a Cidade Velha, outra o Porto ao bairro de Nazaré. Ambas com pista de mão dupla para bicicleta mesmo onde é mão única para carro, permitindo retorno em ambos os sentidos para o ciclista embora em um sentido apenas para o motorista. Quando acaba a segregação ou a demarcação em faixa, uma placa avisa a ciclistas e motoristas que dali em diante a pista deve e vai ser compartilhada.
Eis aí um uso racional de ciclovias: de menor custo do que as sobre calçadas, de fato educa o motorista a presença das bicicletas no compartilhamento normal, e estimula este compartilhamento. Ciclovias como estas, sim, aumentam e melhoram o uso de bicicleta como transporte não apenas nelas e em seu entorno, mas em bairros bastantes distantes também.
Perguntará o incauto leitor: mas, e na grande festa de rua que é o Círio, onde a entrada de motorizados se torna impossível, como se transporta carga, por exemplo, de bebidas? Ora, da mesma forma que se faz no carnaval de rua carioca: com bicicletas cargueiras, verdadeiros caminhões a pedal. E, observem – é uma mulher, neste caso, a guiá-lo:
Cereja do bolo, jambú do meu tacacá: no shopping mais elitizado de Belém, o Boulevard, essa Nossa Senhora de Nazaré feita de catracas de bicicleta. Poderia ser mais positivo, propositivo e longe da Indústria do Medo?
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