Dialética da Decepção
É recorrente um discurso atual de quem supostamente ajudou a eleger Jaques Wagner governador da Bahia em 2006, e que hoje se diz “decepcionado”. “Ele não cumpriu o que prometeu”, alegam – motivo para votarem num Paulo Souto potencialmente modernizante (não fossem as circunstâncias medievais que o rodeiam – a.k.a.: José Carlos Aleluia, um caso de parafrenia), ou para apostarem temerariamente na pressa-sem-direção (cujo destino certo é o acidente, com vítimas fatais) de Geddel Vieira Lima.
Este significante da “decepção” é bastante curioso, e merece nos determos nele um pouco. Ele não comparece como a decepção com Lula em 2005/2006, por causa do episódio do mensalão (a que Wagner aliás se opôs, ajudou a resolver, e fala abertamente a respeito); nem com o Lula de 2003, que teria aderido inopinadamente a um modelo macroeconômico conservador de direita (embora na microeconomia seu governo seja francamente socializante).
A decepção aqui é de uma outra ordem, e passa por uma idéia abstrata: não se sabe dizer exatamente o que Jaques Wagner fez, ou deixou de fazer, que tenha decepcionado – e diante de argumentos como o Neojibá e o TOPA, o decepcionado silencia sem no entanto recuar ou mudar de posição (o que não ocorria em relação a Lula em 2006, quando aos poucos recuperou seu eleitorado apesar do mensalão).
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Para se decepcionar, é preciso que haja promessas não cumpridas – e olhe lá! Como bem diz Alon Feuerwerker, ninguém espera que um candidato eleito cumpra o que prometeu, mas sim na direção que prometeu. Lula prometeu Fome Zero, que deu errado; entregou Bolsa Família, que deu certo. Ficamos satisfeitos: o princípio cumprido é o mesmo princípio prometido – acabar com a fome e a miséria extrema.
A campanha de Jaques Wagner em 2006 não foi quase calcada em promessas materiais (a não ser talvez os Hospitais do Subúrbio de Salvador e da Criança em Feira de Santana – ambos entregues prontos e funcionando este ano), senão em principios: mudar os métodos de fazer política; ampliação de todos os vetores democráticos no estado (independência de poderes com interlocução entre eles; transparência; amplo debate e participação popular na formulação e aplicação de políticas públicas).
Neste sentido, Wagner cumpriu a risca estas promessas: o que se ouve nas ruas é que Paulo Souto foi bom governador, mas representa uma imagem antiquada e cansada; e que Wagner, apesar dos erros, tem acertos e é francamente democrático (e como quase tudo é construído junto com a sociedade, a população tem a sensação de que, como diz um meu ex-amante, “antes de serem erros, são meus – e por isso tenho orgulho deles”).
Nunca antes se pensou a reocupação do Centro Antigo, de cabo a rabo, através dos que lá moram e frequentam (antes era a partir de birôs turísticos). E fez mais: não estava no seu programa por em marcha a tardia Reforma Cultural Bahiana (com duas décadas de atraso, se comparada a Pernambuco), e que em 3 anos e poucos meses se torna referência nacional no processo.
A Reforma Cultural Bahiana entra também, mas não só, na promessa de “democracia franca” e “distribuição de renda e trabalho”. Não estava no programa de 2006 ter uma das melhores sinfonicas jóvens do planeta. Nem sediar 4 dos maiores festivais de teatro anuais do país – quando antes não sediávamos nenhum.
Motivos há, portanto, para surpresa positiva, e não negativa, como alegam alguns.
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De alguma forma, os que alegam “decepção” são os mesmos que dizem ser um governo “lento” (e o comparam por isso, ao meu ver injustamente, ao de Waldir Pires, que foi um governo de crise, em crise, com crise, e abandonado pela metade). Junte-se aos fatos acima listados as conclusões céleres das obras da Via Expressa Bahia de Todos os Santos e do Complexo Viário Dois de Julho, e o argumento da “lentidão” não se sustenta nos fatos. Tanto assim que um amigo outro dia cometeu o lapso de achar que Wagner já tinha cumprido oito anos de mandato: “nem parece que foram quatro (tal é a diferença de cenário, mental e materialmente)”, se deu conta depois de seu ato falho.
Se sustenta, contudo, simbolicamente: é um governo cujo processo decisório é alentado, porque democrático ao máximo. Cito o exemplo da Fonte Nova: mais de ano se discutindo sua demolição – a qual me ôpus. Nesse meio tempo, se decidiu pela demolição, no entanto incorporando as críticas de quem era contra: não se mexerá nos seus alicerces, e se manterá no novo estádio o recorte original proposto por Diógenes Rebouças.
Por mais que a demolição da Fonte Nova me desagrade, não posso dizer que foi processo arbitrário – como a demolição da Sé Velha, ou a Reforma do Pelourinho por ACM.
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Contudo, esta lentidão democrática tem um motivo imaginário para transmitir a idéia de “promessa não cumprida”: as promessas não se presentificam para o desejo apenas em palavras, mas em atos. E me refiro a um ato específico – a súbita eleição de Jaques Wagner no primeiro turno, contra um Paulo Souto bem-avaliado e buscando reeleição.
De alguém que consegue celeremente se eleger, se espera que resolva as demandas sociais com celeridade. É da natureza do desejo, do inconsciente, que assim pensemos; só não é prudente votar com o desejo sem interpretá-lo (inclusive no que ele tem de insatisfeito).
E aqui, entra o argumento de alguns eleitores wagneristas que são no entanto reticentes com a política por ele conduzida: “Wagner não conseguiu se transformar num mito político”. Primeiro, a assertiva me parece falsa: tanto se transformou, por vencer o Carlismo de virada e sopetão, com ACM vivo ainda, que é por isso que achamos seu governo pouco mítico (neste sentido, ele se aproxima de Barack Obama, cuja eleição foi tão proeminente que ofusca seu não obstante bom governo – em 3 anos cumpriu suas duas principais metas: Reforma Sanitária e Bancária).
Mas não querer, a partir de uma vitória mitológica, se transformar em mito é também uma diferença de métodos que bem mostra o quanto o Galego cumpre o que prometeu. ACM, que só se elegera governador uma única vez, mitificou-se como “inventor da Bahia”, inclusive hitlerianamente encobrindo e deturpando a história pregressa, de Octávio Mangabeira e de seu ex-mentor Juracy Magalhães. Wagner poderia ter aproveitado seu triplo-mortal-carpado-hadouken em 2006 para fazer o mesmo – teve humildade para não fazê-lo, honrando o discurso que o levou ao Palácio de Ondina.
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Tanto esta relação pessoal de Jaques Wagner com o poder (humilde, sem ser subalterna – o avesso na prática do carlismo), quanto sua insistência em manter os modos polidos e os métodos de participação popular franca, têm sobre a Bahia um efeito sobretudo terapêutico.
Num estado acostumado a, literalmente, apanhar por tudo e por nada (quer pela herança escravagista, quer pelo 16 de maio de 2001 no Campus da Graça), Wagner não reage senão com beneplácito – embora, às vezes, com firmeza. Num estado acostumado a pais e patriarcas, Wagner se coloca como um igual, um concidadão. Na clínica psicoterapêutica do comportamentalismo se chama isso de “audiência não-punitiva”: é condição sine qua non para qualquer tratamento psíquico, seja de que orientação teórica for.
O próprio processo de não apenas apresentar, mas construir, popularmente políticas públicas por vezes dá a sensação de “caos organizado”. E angustia, muito! (já participei de algumas). Mas é, sobretudo, uma “pedagogia dos afetos” (quando nosso léxico emocional só conhecia, por duas gerações, dois deles: temor e ódio, às vezes mútuo e concomitante). E que tem efeito para fora da máquina do estado, no dia a dia em que estamos aos poucos (e de modo homeopaticamente semelhante ao clima de 4 de outubro de 2006, quando andávamos com a sensação de flutuar, tão leve estávamos) reconstruindo nossa civilidade mais profunda e também a mais imediata.
Engana-se quem acha que em 2006 a Bahia escolheu um novo governador. Escolheu um psicoterapêuta para curar suas deformidades morais, fruto de 40 anos de lanho e mandonismo. Se há decepção agora, tanto melhor: em psicanálise se diz que uma análise se inicia de fato quando o psicanalista cai, aos olhos do paciente, de um lugar idealizado, para o de um sujeito comum capaz de escutá-lo. Reeleger Jaques Wagner talvez seja isso: entrarmos finalmente, não numa catarse, mas numa auto-análise coletiva.
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Sobre isso, nunca é demais recomendar que se conheça o que fez o Prefeito Antanas Mockus em Bogotá (no vídeo abaixo). É dele, e não de Henrique Peñalosa, o mérito de iniciar a recuperação da cidade então condenada. Recuperação moral, cívica, afetiva, psíquica – coube a Peña depois recuperá-la fisicamente.
Não digo que Jaques Wagner tenha apenas o “efeito Mockus” (até porque o governo de Paulo Souto já foi em si um governo de abertura, e sem métodos carlistas, contingência fundamental para que Wagner pudesse se eleger). Talvez ele tenha um pouco de Peñalosa, e um pouco de Mockus, simultaneamente. Tanto melhor para nós.
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