O Som das Sextas – XXIV
Por mais de um motivo costumeiramente se diz que Porto Alegre é a Salvador da Região Sul. Apesar de 200 anos mais nova, e tendo feito sua Revolução Burguesa décadas antes dos outros estados (enquanto a Bahia a fez por último, e sequer a completou ainda), os traços de união abundam. Se Salvador é a mais negra cidade do mundo fora da África, é o Rio Grande do Sul o estado que mais tem adeptos declarados do candomblé da nação ketu (cujo Vaticano fica no bairro do Cabula, cá na Reconvexa: o centenário IlêAxé Opô Afonjá), e no Brasil setentrional (para desespero, como diz o Feil, do Professor Cardoso) foi o único que teve escravidão negra em volume substancial. Aliás, foi através das guerras dos Farrapos e do Paraguay (ambas com ostensiva presença bahiana) lutadas nos pampas que a Abolição da Escravatura começou a se delinear.
Quem deu as feições modernistas da estrutura urbana de Porto Alegre foi o bahiano de Santo Amaro da Purificação, engenheiro Mario Leal Ferreira – responsável pelas avenidas de vale, em Salvador, que preservaram a lógica pedestre e barroca dos bairros nos topos dos morros a partir do decreto do Prefeito Theodoro Sampaio que impedia construção em encostas. Nesse aspecto, é incrível como ambas as capitais se parecem: também na península salobra do Rio Guaíba (como Salvador é península na baía de Todos os Santos), os bairros ficam nos topos dos montes, com acessos em rampas (lá retilíneos, e art-nouveau/decor; aqui, curvilíneos, rococós e de um neoclássico opulento, dançante).
E que nomes de bairros tão soteropolitanos: lá, como cá, Bonfim, Ribeira, Conceição. Lá como cá 2 de Fevereiro é feriado não oficial para celebrar a Rainha do Mar: Nossa Senhora dos Navegantes para os guascos, Yemanjá no Rio Vermelho, cotovelo da Capital Diaspórica. Nenhum bairro em Salvador chama-se Menino-Deus – mas bem que poderia, tanto assim que Armandinho Macedo, n`A Cor do Som, fez bela canção com este nome, na qual Salvador canta (no sentido inclusive de quem paquera) Porto Alegre.
Porto Alegre, como Salvador, se fez sede dos principais levantes populares do Brasil Imperial – são tantos Dois de Julhos, Farroupilhas, Periquitos, Maragatos, Federalistas, Sabinos, Chimangos, Búzios e Malês. Muito embora, é verdade, tenha sido junto com Recife que Porto Alegre universalizou para a nação sua precoce modernização nada conservadora, através da Revolução de 3 de Outubro de 1930. Do Rio Grande veio um dos Regentes Unos, Padre Feijó; da Bahia, outro, Araújo Pinho (que viria a ser bisavó do futuro Reitor da UFBA, Wanderley de Pinho – ambos, aliás, santamarenses). O Brasil teve, no raiar da República, contrabalanceando o poder paulista, o gaúcho Pinheiro Machado e, vindo do Recôncavo, Ruy Barbosa.
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Alexey Magnavita, amigo meu do tempo em que o Orkut não estava orkutizado e lá só se entrava com convite, costuma dizer que o rock está (ou estava) para Porto Alegre como o axé-music para Salvador: em ambos os casos, viraram uma política de exportação cultural simplificatória e que acabavam por matar suas tradições musicais mais primevas (o samba-duro aqui, o ponteio e as modas-de-gaita de fronteira lá), gerando ambientes culturalmente claustrofóbicos e estagnados. Recentemente, tive o prazer de conviver por alguns dias com Guilherme Thyssen Netto, um dos dois bateristas da jovem banda rio-grandense Bidê Ou Balde (aliás, presença certa nos sets do Baile Esquema Novo, a festa do Pós-Axezismo), que estava em Salvador por algumas semanas a trabalho. Nos conhecemos na véspera de Santo Antônio, indo para o show da também pampeana Pata de Elefante na Zauber, Ladeira da Misericórdia.
(Pausa: o filho da puta que disser, depois de um parágrafo como este acima, que “Salvador não tem nada pra fazer e é provinciana”, cometa o obséquio de ir tomar no cú com areia. Obrigado).
Guilherme me confirmou a opinião do astrólogo bahiano criado nos Barris e vieirense, portalegrófilo convicto supracitado: por mais de década, o rock em Porto Alegre era um veneno que não deixava nada vingar, e se consumia a si próprio como uma monocultura (no caso deles, midifundiária e sem o absurdo nosso de privatizar o chão da rua). Esta situação, no entanto, tem se revertido nos últimos anos, com a ampliação do diálogo – com, por exemplo, gente do rock fazendo samba e choro (e resgatando Lupicínio Rodrigues), o que era impensável antes.
Soa como Retrofoguetes fazendo frevo elétrico, ou Baiana System misturando pagodão com dub, né?
E quem abriu as portas para este processo foi o Júpiter Maçã – através, dizem, de um processo pessoalmente doloroso de descida aos infernos pessoal. Este auto-sacrifício subjetivo, como se a História cívica de um estado ou cidade passasse por dentro do corpo fisiológico de um sujeito, não pode senão me lembrar o processo então solitário, e hoje vitorioso, de Pedro Pondé a frente de O Círculo, mostrando que era possível sim fazer “rock popular brasileiro” de alta qualidade sem disputa interna com outros compositores ou externa com o Axé-Sistem, e justamente com isso ir ganhando espaço do Axé-Sistem palmo a palmo.
Pessoalmente, tenho óbices em relação ao Júpiter Maçã: acho seu som chatinho, criativo mas com escopo melódico e rítmico muito mais estreito do que estamos habituados (mas quem convive com a Orkestra Rumpilezz aqui, e com Spok Frevo no Recife, tem um grau de exigência nesse quesito sobre-humanamente elevado). Me incomoda também o fato de ele ter-se exilado em São Paulo quando sua presença física na Capital Farroupilha talvez fosse fundamental para que o processo de abertura e diálogo lá fosse tão intenso quanto o daqui; e me exaspera às vezes o fato de ele usar nome em inglês, Júpiter Apple, e compor neste idioma (um resquicio, talvez, dos tempos do Rock-Sistem, no sentido de Axé-Sistem de lá).
Ainda assim, Flávio Basso (o nome de pia do piá) merece muito mais atenção do que tem recebido da crítica especializada. Enfim, mais do que uma pessoa, Júpiter Maçã é um lugar do caralho!
Post Scriptum: Esta última canção não tem tudo de um Raúl Seixas? Pois bem: coloquem mais este detalhe na já extensa lista de coincidências Guasco-Nagôs…
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