OSESP, lá, em ré menor
Já foi maior – hoje é diminuta em si, sustenida, sem sol nem dó
Conforme disse, sexta-feira última fui assistir a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), pela série Itaú Personalité, na Sala São Paulo (Estação Júlio Prestes).
Embora eu não goste de arquitetura ecletista, e de tudo o que ela representou (em oposição a Art Nouveau e a Art Decor, posteriormente), não se pode negar que Ramos de Azevedo era um mestre: o prédio da Sala São Paulo é deslumbrante! Contudo, sua reforma e requalificação tem problemas. Não se entende porque se optar por um segundo teatro século-XIX (com balcões e camarotes), se a cidade já tem um, o Municipal. Salvador, por exemplo, nos anos 1940 optou por ter um modernista, o Teatro Castro Alves (TCA), em que o governador senta na plateia, e não num camarote – e em que toda a plateia tem igual visibilidade naquela incrível cúpula em V de Bina Fenyat em que cabem duas mil pessoas. Belo Horizonte fez o mesmo: apesar de ser uma capital ecletista de nascença, seu teatro de concerto é modernista, o Palácio das Artes, por Paulo Mendes da Rocha.
Depois, a lógica de transitar dentro da Estação Júlio Prestes segue sendo a de uma estação de trem (Bèlle Epóque, é verdade), com corredores ligando a outros corredores e espaços de convivência um tanto confusos, e não de um salão de óperas. Especialmente, ela não mantem qualquer relação com o em torno do Parque da Luz (diferentemente da Pinacoteca do Estado, feito a partir de uma ruína ecletista de Ramos de Azevedo, com intervenções brutalistas do modernista Paulo Mendes da Rocha – a Pinacoteca sim tem relação tão íntima com a Luz que é a única área não degradada da atual cracolândia que é o Bom Retiro). É excludente e elitista de um modo que, de novo, o TCA com seu foyer aberto em vidros e janelões na altura da rua no Campo Grande não é. E com um desnecessário mar de estacionamentos quando há metrô e trem a 500m de distância (o TCA não tem uma misera vaga de carro, apesar de Salvador não ter metrô, e está certíssimo).
Isto posto, há o fetiche da acústica da Sala São Paulo: o teto retrátil garantiria um eco perfeito para qualquer dimensão de execuções: de cantata cênica a concerto de câmara rococó. E é verdade! Mas de novo, algumas objeções: a sala, muito comprida, dá a sensação de a parede de som terminar antes de chegar ao ouvinte-expectador. Nada daquela “imersão em som” por todos os lados do Municipal do Rio de Janeiro, do Theatro da Paz de Belém do Pará e do Amazonas em Manaus – ou, tenho de repetir, do meu amado TCA. E o palco da Júlio Prestes, por ausência de cochias e cortinas, só serve para concertos: nem ópera, nem teatro, nada que requeira cenário, é viável ali. Uma sala com estas qualidades fica restrita a um único uso – o que, novamente (e sem medo de parecer baianocêntrico, pois trata-se do maior complexo cênico modernista do mundo depois da Opera de Sidney), não ocorre no TCA (embora peça teatral na sala principal seja confuso porque perde-se detalhes do rosto do ator), ou no Santa Isabel do Recife, etc.
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A acústica da Sala São Paulo é, no entanto, o estado-da-arte em termos de detalhes sonoros, os mais discretos. Tanto que é isso que revela a total inabilidade de Yan Pascal Tortelier como regente sinfônico. Por exemplo, ele marca o compasso com batidinhas dos pés no tablado. Não apenas antes de iniciar a peça (o que já seria esquisito), como também por vezes durante a maior parte dela.
Não que estas marcações fossem discretas a ponto de precisarem de boa acústica para serem ouvidas. E havia também os pulinhos! Ah, os pulinhos do Maestro Tortelier… Nem Forró regendo a frevo-orquestra da Bomba do Hemetério pula tanto! Pulava se ralentava, pulava se alegrava. E dava a nítida sensação de não estar regendo coisa alguma – ao contrário, em sua cabeça devia estar de ceroulas em casa bailando com o home-theatre ligado. Tortelier a frente de uma orquestra é um sintoma de autismo musical.
Ninguém venha me acusar de ser contra quebra de protocolos. Eu vibro a cada bis do Neojibá, aproximando mais e mais o modernismo erudito latino-americano do pagodão e do samba-duro, inclusive com os músicos levantando-se para dançar, e deixando os instrumentos de lado. Porém, uma coisa é quebra de protocolo; outra é ausência de técnica.
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É claro que a OSESP continua afinadíssima – só que, agora, incapaz de qualquer interpretação. A Sinfônica de São Paulo tornou-se uma metonímia do PSDB Paulista pós-Covas: técnicos, mas sem ideologia, sem emoção, sem brilho, e sem vontade. Uma orquestra de funcionários públicos no mau sentido – tudo aquilo pelo que John Neschling lutou para que ela não fosse.
Pode-se objetar, e eu concordaria, que John Neschling não é tão bom quanto se promove; e seu centralismo fazia a OSESP executar a interpretação dele para a peça, e não da orquestra como corpo estável (o que não ocorre com a Sinfônica da Bahia, em que é clara a personalidade do corpo orquestral em termos de interpretação, e não apenas de seu diretor ou do regente da ocasião). Contudo, era alguma. Hoje, é uma orquestra tecnicista, tocando num teatro encastelado e high-tec, regida por um medíocre francês – e tudo isso fruto de uma arbitragem política de José Serra e Fernando Henrique Cardoso, pondo a perder o maior legado de um dos fundadores de seu partido, Mario Covas.
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Um diretor orquestral não precisa ser um grande maestro, e vice-versa. Nem sequer precisa ser bom gestor. Ricardo Castro é a prova disso: não administra nada da OSBA nem do Neojibá, entretanto delega a administração às pessoas certas; não é um regente acima do correto (sendo, contudo, um dos maiores pianistas deste século), mas não se arvora a mais do que isso. Como então ele conseguiu reerguer a OSBA e construir o Neojibá? Política. Ricardo é um sujeito sobretudo político, e vai aqui um elogio.
O trabalho de um diretor orquestral é, como o de qualquer servidor público que se preze, o da negociabilidade política supra-partidária e mais ou menos impessoal (embora use de sua pessoalidade), no entanto ideológica. Firmar princípios e idéias, e levar os governantes e gestores a fazê-los acontecer. Um trabalho de diplomata.
É por esta diplomacia que a Bahia pode receber hoje, num mesmo mês, e não apenas para tocar e sim também para ministrar aulas, Benoit Willman, Emanuelle Baldini, Richard Young e Sir Warren-Green. Ricardo sabe o que escolher e como convencer. Dentro e fora do estado.
Por muito tempo John Neschling soube fazer o mesmo – embora não com o mesmo brilho nem com a mesma discrição, dado seu misto de narcisismo e populismo. Yan Pascal Tortelier não sabe, isto fica patente. Neschling foi um diretor, gestor e regente menos bom do que se propagava, mas melhor do que dizem seus detratores. E seu narcisismo era, por vezes, justificável. Tortelier sequer é narcisista: paira num mundo de auto-erotismo de banheira de espumas de sais, incapaz de qualquer escolha digna.
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O erro das escolhas vai até no programa. Com Neschling, a OSESP resgatou modernistas brasileiros importantes como Camargo Guarnieri e Francisco Mignone, que sempre estiveram a sombra de Villa-Lobos. E do Villa, obras pouco executadas. Este resgate vai dar no interesse do Neojibá pelo modernismo latino-americano, e da Sinfônica do Mato Grosso do Sul pela viola de cocho incorporada como instrumento erudito.
Ora, o programa da OSESP este ano abriu mão disso, por completo! O da noite de sexta era absolutamente truncado: abria com a belíssima Sinfonia Inacabada, de Schubert – que ao invés de 4, tem 2 movimentos. Nenhuma outra peça ocupava este ato, excessivamente curto. No segundo ato, uma escolha que não se relaciona em nada com esta: um poema sinfônico (aliás, entediante) de um autor norte-americano. Por que não uma peça do nosso modernismo, que tanto bebe no romantismo tardio que Schubert prenuncia nesta obra?
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A diagramação e impressão do libreto do programa é uma piada a parte. Em formato A4, parece mais uma apostila de curso pre-vestibular. Não há nele nenhuma fortuna crítica sobre as obras a serem executadas. O papel é de baixa gramatura e fica rapidamente amassado. Sinceramente, os da Sinfônica Bahiana me pareceram mais elegantes do que eu suspeitava até então (dobrados em três faces, alta gramatura, com bons excertos críticos, cabe no bolso, etc.)
E, no seu verso, informações como:
“A música de concerto valoriza detalhes muito suaves; assim, manter o silêncio na plateia é muito importante”
(nota minha: ninguém avisou isso ao regente batucador de pés de dirige esta barafunda)
Ou bem a OSESP crê que a classe média alta paulistana que os vai assistir é grosseira, inculta e deseducada (no que eu concordo), ou não sei a que se deve isso. Não se trata de “formação de plateia”: os ingresos flutuam nos R$30,00, a meia entrada (quando a OSBA não cobra mais do que R$10,00, a inteira). Aliás, um dos pulos-do-gato na gestão de Ricardo Castro na OSBA foi dar este tipo de educação básica, oralmente, em início de concertos ao longo do ano de 2007. Mas é totalmente diferente fazer isso na informalidade da fala, ou na formalidade do papel; ou continuar fazendo isso quase uma década após a OSESP se tornar relevante (Ricardo não faz mais isso a frente da OSBA mesmo na gratuita, e lotada, Série Mozart Nas Igrejas).
Aqui novamente a OSESP trata seu público como tutelados, tanto quanto seus dirigentes políticos do tucanato tratam seu eleitorado.
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O Itaú Personalité até se esforça para dar tratamento VIP aos seus convidados (nos quais se incluem os clientes deste banco previlege & prime, inclusive gente de mídia grande como o jornalista da Globo News Carlos Alberto Sadenberg, a quem vi lá). Na prática, é canhestro.
Vejam bem, eu não quero com isso mostrar pouca gratidão pela Riot Comunicações, cuja atenção foi simpática e eficiente. Mas a confusão começa do site: mantem-se no ar, como primeira chamada em pesquisa no Google, a programação do ano passado! – o que gerou algumas dificuldades entre mim e a Riot para decidir a qual apresentação da série eu iria.
Lá, recebe-se com o ingresso uma caixinha com dois bem-casados dentro e dois sachês de café expresso. A caixinha serve como entrada para a sala VIP do Itaú na hora do intervelo. E o que acontece lá? Você troca seu sachê de café por um café…! Não havia nada mais elegante? Um garçon distribuindo proseco ou champagne teria custo idêntico e faria melhor figura.
Aliás, chegamos lá com fominha antes do espetáculo e fomos tentar comer. Tem um restaurantão belíssimo, mas queriamos besteirinhas. Na cafeteria, em cima do restaurante, não saia comidinhas. Em um dos halls de acesso, contudo, havia um stand central vendendo sopa, canapés, sucos, etc. A venda era absolutamente confusa, tendo de ser paga em dinheiro, um ítem em cada balcão diferente. O sopão dos mendigos na Avenida Tiradentes logo ao lado me pareceu mais elegante.
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