Cegueira sem ensaio: um estudo da irresponsabilidade interesseira.
O senhor Fernando Meirelles conseguiu, filmando em inglês um livro de Saramago, se inscrever numa categoria peculiar dos cineastas na história do cinema: os diretores não-autores, quase apócrifos. O exemplo supremo deste tipo de gente é Michael Curtiz, que (des)dirigiu Casablanca.
Digo não-autor não porque falte estilo a sua obra (falta, se entendemos estilo como “qualidade estética” – não falta se entendemos como marcas individuais: seus dedos imundos deixam pegadas mesmo nos crimes que acidentalmente deixou de cometer, mas não de tentar). Refiro-me com este termo aos diretores que não são responsáveis em nada pelo sucesso (ou fracasso) de suas obras – sequer como técnicos contratados de um estúdio (e o estúdio, ou o produtor, aí compareceria como autor). Houve grandes diretores técnicos, que cumpriam apenas a autoralidade de uma instituição, como Anatole Litvak.
Estes (des)diretores, como Curtiz e Meirelles, não necessariamente fazem filmes ruins. Ao contrário, conseguem fazer filmes que tinham tudo para dar errado, darem certo a revelia deles próprios. Nisso não se pode incluir o Ingmar Bergman de O Sétimo Selo: se nele o cenário despenca, o zipper de Max von Sydow aparece, e ainda assim o filme sai bem é pelo rigor metódico de Bergman no roteiro e no trabalho de atores – e não apesar deste rigor (ou, no caso de Meirelles, da ausência dele).
Os desdiretores são marcados por opções ruins que beiram o ridículo. Vejamos o caso clássico de Casablanca: um filme sobre a ocupação nazista na França, que se passa no Marrocos, que foi filmado e lançado enquanto a ocupação ainda ocorria e não havia indício de que os Aliados pudessem vencer a Alemanha (aliás, os EEUU nem tinham entrado na guerra!); personagens flácidos e inconsistentes, com premissas obscuras, uma música óbvia, uma fotografia com luz de padaria. Um ator principal desconhecido, feio e com sotaque de viado (lingua presa e fanho – justiça faça-se, é nestas circunstâncias adversas que Humphrey Bogart mostra porque era o maior ator que o cinema jamais viu). Uma atriz desconhecida, sueca, interpretando uma alemã; bela, porém sem exuberância e inexpressiva. Casablanca era uma verdadeira bomba! Milagrosamente, de filme Z, tornou-se filme A – e a direção de quinta categoria de Curtiz não ajudou em nada, suspeito até que atrapalhou.
Minhas expectativas para com Ensaio sobre a Cegueira eram, claro, as piores possíveis. Um grupo de atores americanos (embora ligados ao Actors Studio), interpretando um texto de Saramago em inglês, num cenário urbano ultra-moderno, e dentro de uma estética entre o cinema independente americano e Hollywood (em tempo: este cinéfilo, porque é cinéfilo, tem devoção por Hollywood, e ojeriza ao cinema independente em geral, mormente ao mentecapto chamado John Cassavetes. Não obstante, creio que uma estética européia e propriamente portuguesa, como a do cineasta Manoel de Oliveira, cairia melhor para uma obra de Saramago). O que ele pretende ser uma homenagem é quase uma ofensa: José Saramago é talvez o prosador que tem a mais íntima relação com a lusa língua (sim, estou considerando Padre Antonio Vieira nesse grupo comparativo). Como ele, apenas Pessoa, na poesia, o teve. E daí, não é apenas um interesse pela língua enquanto fato, mas enquanto consequência psíquica: a afirmação repetida do óbvio, a incapacidade de captar chistes, tão lisboeta é uma presença fundamental na sintaxe saramaguiana, tal como o des-eu e a saudade é fundamental na pessoana e é não menos portucalense.
Miraculosamente, o filme não só funciona bem, como preserva (acidentalmente) parte da sintaxe de Saramago (confusão entre sujeitos enunciantes do diálogo, porque há apenas pontos, vírgulas e maiúsculas a marcá-lo dentro de um longo parágrafo), ao não nomear nenhum personagem senão por sua função e profissão (a Guia, o Médico, o Menino, etc.)
Nada disso faz, contudo, de Fernando Meirelles um cineasta autoral, ou tecnicamente correto. É um interesseiro, um alpinista celulóidico, que ao invés de fazer um filme apropriado ao seu objeto de interesse ou a nação de origem sua ou da obra (e todo filme é sempre, sobretudo, nacional, inclusive Hollywood, que é a arte nacional americana como o afresco renascentista foi a italiana e a música erudita do Romantismo a alemã), prefere servir cegamente aos grandes estúdios.
Não se trata meramente de uma questão de idioma. O italiano Luchino Visconti filmou o alemão Thomas Mann em inglês, e o filmou bem. Mas está lá o esforço por substituir as longas descrições sinestésicas de Mann pelo onirismo encadeado da câmera, pela música de Gustav Mahler – e especialmente, a parcimônia nos diálogos, que seria impossível em Saramago, cuja obra beira a oralidade reconstruida. Nem se trata de uma questão de filmar através dos grandes estúdios: Morte em Veneza seria inconcebível fora da MGM – mas uma coisa é filmar através dos grandes estúdios, outra é filmar a partir deles e dentro deles.
Federico Felinni nos lembrava que filmar é como dar um tiro na lua: puro cálculo na causa, mas o efeito é sempre acidental. Há uma relação entre o rigor do autor-diretor e seu efeito aleatório como em nenhuma outra arte. Em Meirelles o efeito é aleatório apesar de não haver rigor nenhum na sua causa (aliás, interesseira) – o que é completamente diferente e, se não está longe de ser cinema, está longe de ser cinema autoral seguramente.