Artefatos Vitorianos Para Uso das Cidades – I
Nosso Teatro Íntimo de Bolso
O século XIX conheceu a popularização e a aceleração da imprensa que, inventada por Gutemberg, só agora alcançava um paradigma industrial do produção – e nisso não difere de outras áreas. Surgem os jornais diários, os períodicos, os vespertinos, as revistas, e especialmente: o livro de bolso.
O formato-livro tem sua excelência enquanto design de produto desde o surgimento da Universidade, na Idade Média. Muito mais fácil de manusear do que um papiro ou pergaminho, o livro tinha outras vantagens; ocupava pouco espaço para ser guardado, e sua lombada permitia a leitura de uma síntese de seu conteúdo sem termos de retirá-lo da estante. Primeiro produzido manualmente, através dos copistas e das iluminuras, tem na Renascença o surgimento da manufatura: os tipos móveis permitem a celeridade de sua confecção, certo barateamento nos preços, e uma maior oferta de produto; por outro lado, sua produção depende ainda da mão humana, por vezes sem divisão social do trabalho (inclusive com alguns autores sendo eles próprio tipógrafos e editores). E, principalmente, não eram portáteis: grandes e volumosos e caros, sua posse se restringia a aristocracia, às universidades, ao clero.
O Romantismo nos lega este fato pragmático: a ascensão da burguesia e a alfabetização do proletariado (com o fim definitivo, ao menos formalmente, da escravidão e do servilismo) expandem o público leitor. O escritor passa a ser uma engrenagem do sistema industrial, com um organizador de capitais (o editor), um distribuidor (o livreiro), etc. A prosa narrativa ganha proeminência primeiro em relação à poesia épica, e depois à lírica.
Surgem as bibliotecas públicas, bancas de revista nas calçadas e a figura do menino-jornaleiro gritando “Extra! Extra!”; livrarias tornam-se comércio cotidiano de bairro. Ler o jorna num parque público, um livro no bonde, uma revista (com fotografias!) enquanto se aguarda um ônibus de tração animal, ou dentro do cabriolé de praça voltando pra casa (capô aberto, vale lembrar) passam a fazer parte do cotidiano das cidades. O livro é assim, nos moldes em que o conhecemos hoje, um objeto sobretudo urbano. Seus usos têm íntima relação não apenas com as cidades, mas com o mover-se dentro delas.
Eis porquê inserirmos o objeto-livro (e seus correlatos) nesta série que visa mostrar como a técnologia vapor-punk & mecano-punk da Bèlle-Epóque é o estado-da-arte em termos de mobilidade urbana: de lá vêm os calçamentos, praças e parques públicos como entendemos hoje (embora todos remontem em esboço, como o livro, à épocas anteriores – quando tinham outros intuitos e finalidades), a bicicleta, o bonde, o metrô, o ônibus. Até mesmo o motor a explosão, o automóvel, o esgotamento sanitário, a distribuição por canos residenciais de água potável, gás e óleo. Tudo isso que faz uma metrópole possível – aquilo que fez Hausmann fazer Paris deixar de ser uma vila medieval.
O livro (e outras formas impressas) ainda hoje é um grande auxiliar dos deslocamentos em metrópoles. Qual o maior prazer do transporte coletivo, em comparação ao automóvel e mesmo à bicicleta e ao andar a pé? Poder ler. Folhear o jornal do dia, prender a atenção em longos parágrafos de ação do século passado, fazer o olhar voar pela janela como quem lê um poema sendo recitado em meia-voz; tentar descobrir que novela é aquela que a moça no banco adiante lê ao ponto de lhe não corresponder ao não obstante insistente flerte; discutir a matéria do semanário político com o desconhecido vizinho de banco, ao lado, de quem se discorda frontalmente, mas com a cortesia que reservamos apenas aos anônimos.
Daí nossa proposta de intervenção Semeando Livros: ficou claro para mim, há muito tempo, que o direito às cidades e o direito ao livro estão enodados; que o capital literário (no sentido de letra, e não de literatura) e o capital urbano são por vezes um só e o mesmo. E não por acaso o Brasil, país dos não-leitores, é o país das des-cidades. Aproveitamos para dizer que alguns livros de nossa intervenção urbana tiveram seu texto de folha de rosto modificado para: “ROUBE-ME! (mas não me deixe em casa)”, num estilo que lembra o mais anti-vitoriano dos vitorianos: Sir Charles Ludwidge, Lewis Carroll.
Quando se propõe que as formas Art-Nouveau (e o livro o é por excelência, imitando industrialmente a natureza da fala teatral e da escrita cursiva das epístolas – não são os primeiros romances sistemáticos, durante a Revolução Francesa, justamente epistolares?) são o estado-da-arte para o uso das cidades, não se quer dizer que não se os pode modernizar. Salvo uma que outra tentativa de modernice, tornar tecnologicamente up-to-date as formas do fin-du-XIXeme-siècle é muito bem-vindo. O que são os iPods, Mp3 Players, e antigamente os walkmans, senão uma ampliação da função-livro na metrópole do auge do capitalismo? – inclusive porque se podem usar andando, e o livro não. Até mesmo o telefone-celular entra nesta lógica, atribuindo função de auxíliar de mobilidade urbana a um ente vapor-mecanopunk que ainda não o tinha: o telefone, hoje dito fixo.
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Em Tempo: Alguns leitores insistiram que eu sorteie alguns exemplares das coletâneas em que participo. Farei melhor: os que quiserem, me peçam por aqui ou por email, deixando nome completo e endereço postal, bem como qual das duas (ou ambas, se for o caso) coletâneas quer ganhar – a do Concurso de Crônicas de Canoas ou a do Prêmio de Contos do Paraná.
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