O Som das Sextas XXI
Falar do Opanijé tem pra mim uma dificuldade especial, e um prazer igualmente especial. A dificuldade é óbvia: eu não gosto de rap. A facilidade é não tanta: convivi, no fim da adolescência, com o então resistente e ainda precário (embora amplo) Movimento Hip Hop de Salvador – naquele momento o rap no Brasil ganhava força inclusive midiática, mas na Bahia ficava para traz sufocado pela tirania monocórdia político-musical. E quando digo “convivi”, falo de ir (a pé, por óbvio) a shows de Hip Hop feitos na cara e na coragem no meio da Gamboa de Baixo, quando esta estava longe de ser pacificada, antes da legalização daquela (belíssima) invasão de encosta em frente ao mar, e quando o tráfico de maconha lá existia de modo ostensivo.
E devo isso a um dos integrantes da Organização Popular Africana Negros Invertendo o Jogo Excludente (que, em sigla, Opanijé, é o toque ritual para Obaluaê Xapanã, ou Omolú, na nação de candomblé Ketu da Bahia e do Golfo do Benin) é meu velho amigo de décadas, Chiba. É de Chiba uma das melhores definições sobre mim: “Jerzy é um chato necessário”. Vai aí uma ótima teoria da crítica – crítica cultural é a chatice necessária.
Graças a esta convivência e estas vivências com o hobbit perambulante da Barra Avenida (pra mim um personagem mítico de Salvador tanto quanto Chico Diabo, A Mulher de Roxo, Jaime Figura, Bel Borba: Chiba é parte viva da paisagem da Reconvexa) posso redarguir a quem me diz que anti-axezismo é coisa de aristocrata decadente; que o povão não se sentia excluido pelo axé-sistem, e gosta dele. O movimento hip-hop, então oprimido e resitente, hoje florescente por mais de uma via, deixa claro que não: que a insatisfação ia do pagodão ao heavy metal, e do samba ao jazz.
Dentro disso, o Opanijé representa um salto de qualidade. Por um lado, a pegada rap se imiscuiu no pós-pagode do Psirico e na cultural-jamming do Baiana System, e influenciou fortemente o primeiro momento de O Círculo ainda com Pedro Pondé. Por outro lado, o hip-hop em si não aparecia tanto, embora o crescimento da cena dub, ragga e dance hall seja importante através da boate Zauber (na ladeira da misericórdia) e do Minestéreo Público. A última vez em que houve um rap bahiano puro e com alguma força foi ainda no reinado do carlo-axezismo, quando a Erê Jitolú fez a trilha sonora da montagem de Marcio Meirelles (então no Vila Velha redivivo) para Material Fatzer, de Brecht concluida por Heiner Muller. A Criança de Barro (em nagô, Erê Jitolú) já incluia alí violinos clássicos ao vivo em suas composições – e é justamente da Erê Jitolú que sairia um dos integrantes do Opanijé: Lázaro.
Mas o caminho teria de ser mais profundo, mais bahiano, mais yorubá. Seria preciso reaproximar o rap das raízes africanas da Bahia, não americanizadas, e o Opanijé fez. Inseriu toques de vassi, ijexá, barravento, berimbau de capoeira, cabila, samba de roda e o samba-reggae em suas músicas – tanto quanto fez a Orkestra Rumpilezz, num sentido totalmente diferente. Pode-se argumentar que esta série que mantenho é sobre a canção, e diferente do Rapadura, o Opanijé, rap mais puro, não flerta ainda bem com ela com suas letras longas, pouco dançáveis e pouco cantáveis. Mas era uma faceta da superação do Axé-Sistem que estava faltando aparecer aqui.
Faceta que pode, e só ela pode, dar um pulo-do-gato que vejo como essencial para os próximos rumos e movimentos de jogo: reaproximar o anti-axé do pagodão. Como dissemos acima, o Psirico foi quem primeiro reaproximou a dicção do hip-hop e sua contestação social, bem como seus recursos tecno-eletrônicos, do samba-duro da Bahia. O fez, é verdade, em direção inversa: inserindo no pagodão elementos de rap. Depois dele, o pagodão-extremo do Fantasmão (cujo vocalista é mais culto e com mais habilidade vocal do que se pode supor) e o neo-pagodão do Parangolé fizeram o mesmo. Não há porque mantê-los do lado de lá do Axé-Sistem – eles que sempre se declararam, por exemplo, fãs de O Círculo e do Retrofoguetes. E o Opanijé é uma ponte em construção para este diálogo, se quiserem.
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