Outras considerações sobre criminalidade
Quando há algumas semanas escrevi a respeito de alguns paradoxos atuais na Segurança Pública da Bahia, duas críticas apareceram que merecem uma resposta mais alentada a pública. A primeira, do leitor Rafael Borges, trata da falta de uma política criminal no Brasil – ou seja: em termos de engenharia comportamental, de uma contraparte punitiva para os reforçadores (distribuição de renda), sob as mesmas contigências e regras verbais. Outra, feita em particular por uma amiga, diz respeito a que o modelo da relação em parábola entre criminalidade e distribuição de renda seria incorreto pois ignora variáveis como punibilidade, ocupação urbana, disparidade social (e não apenas de renda), etc.
Confesso que pensei em inserir esta primeira questão desde aquele texto, entretanto recuei para evitar maiores polêmicas. A questão da punibilidade, eu chamo de “escolha moral pelo crime”. Ninguém é assaltante por ser pobre (embora ser pobre seja uma contingência que torna esta escolha mais provável); se assim fosse, não haveriam Mardofs, Danieis Dantas e ACMs. Contudo, quando se diz “escolha moral” corre-se o risco de cair no mentalismo: o sujeito é assim porque escolheu, no vácuo. Isto é: é preciso haver uma teoria externalista, material e objetiva da escolha moral subjetiva. E esta nada tem a ver com a miséria como causa.
A moralidade é formada pela expectativa de punibilidade. Isso nada tem a ver com as punições serem brandas ou severas, mas com o fato de a punição ocorrer o mais brevemente possível, logo em seguida, ao comportamento que quer punir e dentro das mesmas contingências. Dito de uma forma prática: uma reprimenda verbal pública, no ato de uma infração no trânsito, tem mais efeitos de modelagem comportamental do que a multa, por maior que seja, que chegaria um mês depois ou mais (e que por isso dá a sensação de arbitrariedade do ato, caindo na idéia totalmente fantasística da “indústria de multas”: no Brasil se multa pouco e se reboca nada).
No Brasil esta expectativa de punibilidade inexiste, e não tem aumentado junto com a distribuição de renda. E tem efeito nas mais díspares situações. Por exemplo, o uso de perfis falso na internet para comentar em blogs. Como exemplo, observem os comentários ao fim deste post: o fato de o sujeito não escrever usando nome e sobrenome (e email) reais (e válidos) o autoriza inconscientemente a cometer pequenas grosserias; e acaba me autorizando ao mesmo em relação a ele (ou ela). Até aí, nada demais; só que havia outros comentários mais ofensivos, que não aprovei. E no limite, usos de perfis falso criam uma zona cinzenta que vai desde a pequena birra até o aliciamento pedófilo e outros crimes realmente graves.
Esta ausência de expectativa de punibilidade aumenta inclusive a violência institucional: o policial militar, por exemplo, não supõe que possa ser punido por algum abuso de poder que venha a cometer (e do qual provavelmente também é vítima) – não obstante o aumento de eficiência das ouvidorias e corregedorias. (Isso tem tudo a ver com a não revisão da Lei da Anistia, e com o fato de que as Forças Armadas nunca pediram desculpas por 1964 e nunca admitiram que foi um erro. Quando inquiridas a tal, reagem dizendo que era uma demanda da população civil de então – as “vivandeiras de quartel”. De fato, mas a população civil envolvida no Golpe de 1º de Abril já pediu desculpas por isso – Carlos Lacerda admitiu o erro três anos depois da queda de Jango, por exemplo. Falta o exército fazer uma gama de meas-culpas que remontam a derrubada do Império em 1889, mãe de todos os golpes anti-constitucionais da nação).
Ainda sobre a diferença entre punibilidade e punição, vale ressaltar que a severidade do castigo pode atrapalhar, ao invés de ajudar, na diminuição da criminalidade. Cito um exemplo vindo de meu exercício da clínica psicanalítica em hospital geral do Sistema Único de Saúde. É comum que enfermarias de infectologia recebam pacientes carcerários. Em entrevista a um desses pacientes, este me relata que não é a primeira vez que vai preso, embora seus crimes sejam de pouca monta (furtos a mercearia, sem porte de arma algum). No geral, trabalha como baleiro credenciado (vendedores ambulantes nos ônibus de Salvador), um trabalho a um só tempo legal e marginal. Note-se que encarcerar por 3 meses um sujeito que comete estes delitos não ajuda em nada – tanto mais porque deve haver um hiato idêntico entre o crime, o julgamento e sua execução penal. Muito mais eficiente é que o julgamento se desse brevemente, mas que a pena não fosse carcerária: teria mais efeitos positivos de modelagem comportamental do que misturá-lo a criminosos de carreira.
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Sobre o modelo em parábola, é preciso lembrar como se constitui algebricamente este ente geométrico no plano cartesiano. As funções parabólicas representam equações de segundo grau (quadráticas) entre duas variáveis, com até três modificadores ou condicionantes não-incógnitos das mesmas:
f(x) = ax2 + bx + c
Portanto, quando dizemos que a redução da criminalidade ou melhoria da segurança pública f(x) é função parabólica da distribuição de renda x, estamos levando em consideração duas coisas:
- a melhoria na distribuição de renda não implica numa melhoria da segurança pública. Ao contrário: aumentando o valor modular de x, o valor linear de f(x) aumentará se não houver mudança nos condicionantes a, b e c. Dito de outra forma: distribuição de renda, sozinha, pode agravar a criminalidade, ao invés de diminuí-la;
- podemos chamar a condicionante a de “ocupação urbana (uso do solo e gente transitando a pé, coletivamente, nas ruas)”, b de “disparidades sociais (de acesso a bens, cultura, capital linguístico, cujo distribuição não melhora ato-contínuo à distribuição de renda)”, e c a “expectativa de punibilidade”.
Creio que com isso deixamos mais clara a questão. E observem no ítem 2 que se todos os condicionantes mudarem, mesmo que a distribuição de renda não melhore, a criminalidade pode cair ou diminuir sua aceleração. Como se vê, é uma relação complexa, multifatorial e nada linear.
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