Uma Luz em meio a Caetanices

23/05/2010 at 14:42

O leitor que assina por Flávio Alves, da Bahia, mandou um comentário extenso e intensivo sobre nossas críticas a postura insensata de Caetano Veloso. Foi, até agora, o único comentário em defesa do texto de Caetano que não caiu em caetanices poetizantes; ao contrário: lógico, racionalista, e factual, foi direto a pontos cruciais de meu texto.

Por ser longo, e também pela excelência e porque pede que nós respondamos a diversos pontos do comentário, não aprovei no post original. Vai portanto aqui, já não digo integral, mas o mais integralmente possível:

Você fala em mentir e enganar, porém após a transcrição do primeiro parágrafo chega a uma conclusão tosca. Pergunto: descontada a sua ironia, foi realmente de boa-fé aquilo? ( “Ou seja: segundo Caetano, ACM foi o homem que conduziria, como conduziu, o Brasil e a Bahia ao paraíso da equidade e da civilidade.”)

Porque é obvio que apontar ações positivas, avanços, não significa nada disso que você passou nessa sua “tradução”. Caetano, por sinal, insistiu nesse ponto durante todo o texto: mesmo políticos de péssima memória são capazes de deixar legados importantes em algumas áreas e isso não deve ser desconsiderado.

Sim, e reconhecemos isso. Não obstante, colocamos o carlismo no mesmo balaio da experiência do franquismo e do nazi-facismo alemão. Isto é: um regime em que mesmo os acertos vêm tão eivados de erros que só podemos considerá-lo como retrocesso (no sentido em que Karl Marx mostra como o surgimento do regime feudal foi um retrocesso em relação a Roma Imperial, tanto econômicamente quanto social e politicamente).

Tenho algumas questões, enquanto leigo no assunto:

As duas tentativas de revitalização, por Lina Bo Bardi, foram realizadas, também, durante governo carlista? Se sim, qual é então o equívoco de Caetano quando relembra as reações negativas de Candice Bergen e Décio Pignatari? Nesse parágrafo, ele fala apenas e justamente das críticas que houve à restauração de alguns sobrados e não das críticas ao modo como, posteriormente, foram realizadas a desocupação. Onde está a confusão do autor do texto?

As reformas de Lina se deram uma no Governo Juracy Magalhães – a quem ACM apoiava, e depois traiu em 1970; a outra na prefeitura de Mário Kértzs, no Governo João Durval – ambos carlistas de origem, no entanto naquele momento já rompidos com ACM, que tentava mediocrizar e inviabilizar o governo de ambos.

As críticas de Décio Pignatari não são a restauração de alguns sobrados, mas a desocupação do Centro Antigo. Ao se propor “reformar” o Pelourinho, ACM quer enxugar gelo e resolver um problema que ele mesmo criou ao inaugurar o CAB – e tentar resolver o problema acirrando-lhe as causas: tornando o Pelô ainda mais desocupado e sem função orgância com a cidade ou o estado. A título de criticar a reformar carlista, Décio Pignatari se viu obrigado a elogiar a de Jayme Lerner para o Centro Histórico de Curitiba, a quem ele até então criticava: Lerner não só não desocupou, como readensou com habitação o Centro Histórico de lá.

Lerner também era PFLista. Só que não era feudal, nem tinha traços de psicopatologia grave que levou um filho a morrer de infarto, uma filha ao suicídio, e um amigo a romper com ele porque teve seus alunos espancados em 2001. Observe que, ACM morrendo, não há um “legado de ACM”, ou se há ninguém o quer defender – nem mesmo seu neto que carrega o peso de seu nome.

Dois: Quem fez a avenida ACM, a Lucaia, a Garibaldi…? Esquecendo aqui o rigor no conceito de avenida “de vale” e considerando apenas o ponto principal: a capacidade dessas grandes vias de cortarem a cidade, abrindo espaços. No livro Uma História da Cidade da Bahia, Antônio Risério afirma, após atribuir a Mangabeira “o rompimento com a rotina de pequenas obras”:

“Mas foi sob o comando de um polêmico ACM e de sua equipe, em administrações mais ou menos sucessivas, que a cidade mudou realmente de figura. Em 1967, começaram a surgir as primeiras avenidas de vale (embora não possamos esquecer de que já havia sido feita a Centenário, como frisa Américo Simas Filho)”.

Garibaldi foi no Governo Roberto Santos. O Lucaia segue a lógica de expandir Salvador para fora de seu Platô Central e da Segunda Cadeia de Morros (Nazaré, Federação e Brotas), de modo que dizer que não é uma “avenida de vale” não é mero esmero de nomenclatura. As avenidas de vale, como concebidas por Mário Leal, visavam preservar o recorte histórico e a ocupação da cidade-fortaleza sobre as montanhas. O Lucaia possibilita a ocupação da restinga da Pituba de modo nada nada pedestre. Deu no que deu: Imbuís e no limite LeParcs…

Enfim: Caetano mente, se engana, ou temos aqui, no mínimo, controvérsias?

Ambas as coisas. Só que se fossem meras controvérsias (e para isso ele teria de ter, como você tem, consequência no discurso que profere e nas práticas que exerce – e ele não tem nem nunca teve), a discussão seria mais rica e menos recheada de afetos. Inclusive de minha parte – eis aí uma questão de segunda-lei-de-Newton.

Ressalte-se que no texto está claro que o projeto das avenidas de vale são de 42. E, também, que não é preciso ser carlista (coisa que não sou, pelo contrário – assim como Caetano) pra apontar essas modificações realizadas pelas administrações de ACM na cidade, as quais não foram apenas fruto do espírito do político em questão, mas também, em alguma medida, consequências naturais das necessidades e urgências da cidade que crescia.

Apontar as modificações feitas por ACM não faz de ninguém carlista ou anti-carlista. Não perceber que estas modificações foram avanços apenas nas aparências, representando enormes retrocessos do ponto de vista infra-estrutural, pode não ser carlista – mas seguramente não é anti-carlista. Quanto a você, não sei. Mas Caetano não é anti-carlista, nem deixa de ser: o exercício de des-opinião, típico dele, faz com que ele não seja nada, muito ao contrário, e tanto faz, ou não. Caetano é uma gelatina lógica! (No mesmo sentido que já dissemos aqui que Lula é uma gelatina moral. Mas Lula governa e bem um Estado Nacional. Caetano não compõe nada digno há tempos…).

Não há consequência natural em urbanismo: a geografia é uma ciência política – a afirmação é de Milton Santos, justamente ao estudar Salvador, e ACM interveio em Salvador ignorando solenemente a obra-prima do maior geógrafo que a humanidade conheceu. Expansão carrocêntrica para fora de um centro expandido, esvaziando de funções seu Centro Histórico, não é “necessidade urgente” de nenhuma metrópole – ao contrário: é tudo de que uma cidade não precisa; e mais: precisa que jamais ocorra. E é justamente o que unifica o “legado urbano de ACM”.

Vale lembrar que o Carlismo nunca se manteve financeiramente através do latinfúndio agrário, e sim da especulação imobiliária. Esvaziar o Pelô, fazer o CAB e a Pituba, foram “necessidades urgentes” da economia interna de uma ditadura, e não da prática de liberdade de uma cidade. Ao contrário: sustentou aquela ao custo de minar esta, como não poderia deixar de ser.

Seguindo.

Você afirma que hj os arredores do Pelourinho viraram cracolândia. Mas qual quadro tínhamos antes de qualquer medida de revitalização? Um patrimônio da humanidade quase todo relegado a “zona”.

E qual quadro tínhamos quando o Governo do Estado ocupava, como em qualquer lugar do mundo, o Centro da Capital?

As reformas tiveram seus graves equívocos, no modo como foram executadas e no seu conceito, porém houve um lado muito positivo, de colocar o Pelourinho como um espaço nobre da cidade, que merece cuidado especial. Hoje, vemos que não há mais aquele fulgor dos anos 90, quando a reforma era novidade. Problemas de sustentabilidade foram escancarados. E muito em razão da falta de vitalidade da proposta de reforma que foi executada. Concordo: erro do carlismo; Caetano erra feio ao desconsiderar esse dado. Mas até que ponto trata-se apenas de consequências do erro original carlista?

Eis aí um ponto legítimo de defesa da reforma carlista do Pelourinho: fez com que o Brasil acreditasse que alí era uma área nobre, a se orgulhar. Mérito! Embora as consequências físicas desta gentrificação só tenham sido sentidas quando a Reforma chegou ao Carmo – justo quando João Henrique se elegeu prefeito (ainda pela esquerda) e Paulo Souto, rompido com ACM, era governador pela última vez. Isto é: fora do carlismo; e, principalmente, sem retirar moradores.

(O curioso, Flávio, é que nenhum carlista levanta essa bandeira. Ficam todos acuados pelos profusos erros. Nem Geddel consegue!)

No texto de Caetano, mais do que mais uma denúncia a um suposto abandono do Pelourinho (abandono que pra mim não existe, estou de acordo com você), há um pedido pra que o governo se manifeste no sentido de dizer o que, diante das chagas atuais, considera positivo e o que pretende modificar. Um pedido pra que, já que critica tanto (e, no meu entender, justamente) o modelo executado pelos carlistas, já que afirma que o Pelourinho deve “andar com as próprias pernas – e daí vem a crítica de Caetano ao privatismo que você diz não ter entendido… -, que projete algo diferente. Que realize. Mas que não se descuide do Pelourinho.

Sei, repito, que o Centro Histórico não está nada parado. Há muitas atrações artísticas boas promovidas pelo Estado no bairro. E há outras ações interessantes, citadas inclusive por você no seu texto. Mas sou ciente também da intensificação das reclamações nos últimos anos (por pilantragem da mídia ou não) e acredito que, independentemente de ter havido um real recrudecimento nos últimos anos, há problemas sérios a serem resolvidos. O governo tem sido suficientemente ativo diante desses problemas, considerando a importância do Pelourinho pra cidade?

No meu entender, sim. A partir do mês que vem o Governador passa a despachar do Palácio Rio Branco. E em 2011 a UFBA volta a ter aulas de graduação e pós- no Terreiro de Jesus.

Duas coisas que não acontecem desde que ACM foi imposto governador, em 1970. E que causam real ocupação do Pelô, para além do turistismo.

E o principal nem é isso: pela primeira vez se pensa o Centro Antigo, e não apenas o Pelourinho-Carmo. O Centro Antigo vai da Vitória a Liberdade, da Jequitaia a Nazaré. Finalmente, as ações incluem o Pelô como parte de outras envolventes da capital; e do estado, já que hoje (e não antes) a capital transita entre Cachoeira (que ocupa esta função em homenagem a Guerra de Independência entre os dias 26 de junho e 2 de julho) e Salvador.

Isso não é mero simbolismo (embora se fosse, já seria muito). Isso tem efeitos práticos – muito mais rápidos e evidentes do que o simbolismo que você citou acima, de o carlismo ter feito a população brasileira encarar o Pelô como um tesouro pátrio – e que, repito, é mesmo louvável!

Em suma, tentando esclarecer pra não ser também chamado de confuso: não concordo com Caetano quando insinua haver um abandono, mas concordo quanto à necessidade de políticas claras e cuidadosas para o lugar.

Políticas claras há, senão o Escritório de Referência não teria sido premiado pela Caixa Econômica Federal nem estaria concorrendo a prêmio similar pela ONU em Dubai.

O que concordo que falta é uma divulgação mais clara e ostensiva. Só que não é de hoje que dizemos, e não somos os únicos a dizê-lo, que o Governo Wagner tem gravíssima dificuldade de se comunicar com a população – que embora o apoie largamente, e sinta no dia a dia ganhos importantes, fica confusa e não consegue organizar este apoio e estes ganhos num discurso explicativo para si própria.

E, de todo modo, concordâncias e discordâncias, quanto ao mérito, a parte, quero com o meu comentário dizer que acho o texto de Caetano distante desse ridículo que você pintou. Há, sim, substância, lógica, no texto. Embora haja também relativizações inconclusivas – o que não é de todo ruim: uma das coisas que atraem no pensamento de Caetano é justamente a sua complexidade, em contrapartida a tanta gente que chega a conclusões com a maior facilidade, maniqueístas demais pra traçar alguma realidade.

O seu erro grave no texto é não ver ou não destacar o quanto as problemáticas atuais do Pelourinho dizem respeito à sua transformação em shopping center a céu aberto pelo carlismo. Quanto ao resto, são ponderações razoáveis.

Essa ridicularização, tão em voga, a Caetano Veloso pra mim é uma bobagem e mais ainda é bobagem tentar ridicularizá-lo numa comparação com Chico Buarque. Caetano não deve em nada a Chico.

Não ver, por exemplo, que chamar Márcio Meirelles de amigo é uma forma de ressaltar uma impessoalidade da sua crítica – um caráter cívico – e dizer, por outro lado, que se trata de “ranço carlista” é uma prova dessa birra que muitos têm com Caetano Veloso. De Chico Buarque até as besteiras são abençoadas…

É que Chico costuma ter parcimônia; no que Caetano não tem nenhuma, e nisso é bem bahiano – no peior sentido do termo… (isto é: a fala de Caetano não segue a xibietagem de Mangabeira; ao contrário, é uma des-xibietagem que só fica com a parte risonha e agressiva do pensamento do lendário ex-governador, jogando fora sua agudeza e sagacidade).