Festa sem pé nem cabeça
Pela segunda – e última! – vez fiz o esforço hercúleo de tentar ir a Festa Nave (desta vez com o tema de Bacanave), e me foi completamente insuportável. Não me agrada dizer isso, já que a festa é mantida a 5 anos seguidos, passando por três casas diferentes (e hoje residindo no bunker do Pós-Axé, que é a Boomerangue), por duas pessoas que admiro: Luciano Matos, e de modo mais distante e virtual Janocide.
Também me incomoda esta constatação pessoal, porque sei o papel que a Nave cumpriu nos anos terminais e duros do axezão dominante. De 2005 a 2007 foi um dos canais de abertura, inserindo a fórceps e marteladas o pop e o rock mundial independente e de ponta na claustrofóbica “Capital do Axé”. Sem isso, muita coisa não teria mudado na recepção cultural de um público, na mentalidade e hábitos de uma classe média que então transpirava jequice. Especialmente, sem a Nave, o Baile Esquema Novo jamais viria a nascer.
Isto posto, em que consiste a Nave hoje? Uma cena da madrugada deixava claro: numa festa temática desta vez centrada no erotismo e na pornografia, meninos se aglomeravam em frente a uma máquina para jogar fliperama enquanto sobre suas cabeças girava um manequim de vitrine sem pés, braços e cabeça, de plástico – algo como uma Vênus de Milo ready-made, uma Vitória de Samotrácia inalada. A Nave é isso: uma festa que, se propondo a ser de putaria, as pessoas vão para jogar video-game. E cujo ítem mais subversivo é um manequim desnudo pendurado no teto (e como disse um amigo: ainda por cima frígida! “Você mete o dedo no cú dela e ela nem reage…” – ele é frequentador do Baile Esquema Novo, e não da Nave…)
Se o Esquema Novo é um Baile – uma celebração da dança coletiva e em par, quase carnavalesca, uma verdadeira pipoca da música brasileira lato senso -, a Nave é uma festinha de playground. Não cabe nem dizer que o público da Nave só pularia carnaval de abadá ou em camarote: este é o público das chatíssimas boates heteros e igualmente chatas boates gays de Salvador (chatas, mas nisso legítimas e autênticas). O público da Nave não iria ao Carnaval, porque tem medo, porque só anda em grupelhos sectários; ou porque, em última instância, embora em sua minoria, fazem parte dos xiitas camisas-pretas que não se deram conta de que a oposição estética (falsa!) axé-music X rock`n roll acabou tem três anos e lá vai…
Se o Baile Esquema Novo exala cheiro de Ribeira, Canela e Largo Dois de Julho (mijo incluso!), a Nave fede a Pituba, Imbuí e, no limite, LeParcs e Alphavilles. Na melhor das hipótese, a Festa Nave é hoje uma pálida imitação do Grind da Loca, em Sampa – sem no entanto herdar deste o espírito, que fica todinho no Baile. O Grind e o Baile cumprem a função de lançar novos olhares e haveres sobre as suas cidades (São Paulo e Salvador); a Nave, ao contrário, enclausura e renega sua cidade (querendo fazer de Salvador uma São Paulo capenga, ou contemplando um público que abomina Salvador e que daria tudo para fugir pra Sampa). Se houvesse uma festa de música brasileira em Sampa eu diria o mesmo: é uma imitação do Esquema Novo como formato – mas não capta seu espírito, que é idêntico ao da Loca.
A BacaNave foi, parece, uma tentativa de inserir algum erotismo (virtual e ascéptico) na festa. Ora, este mesmo erotismo, real, lânguido e flutuante, existe no Baile Esquema Novo sem precisar de fazer esforço – e é um erotismo bahiano, que só existe em bahianês: xibietagem. Falta a Nave uma auto-ironia cosmopolita que sobra ao Baile. E isso se reflete no modo com que se vai vestido: os frequentadores da Nave parecem estar fantasiados de paulistanos wannabe; para o Baile Esquema Novo se vai de chinela havaiana, regata velha e bermuda rasgada. Eu mesmo já fui de sunga e salgado de água do mar, ou podre de suor, chuva e cerveja de ter sambado um dia inteirinho em Cachoeira na Festa da Boa Morte.
A Nave teve um papel importantíssimo, vive cheia e seus criadores e mantenedores são louváveis por isso. Mas minha relação com ela é a mesma que tenho com a filosofia em comparação com as ciências. A filosofia fez um bem enorme a humanidade, parindo as ciências. Uma vez que estas nasceram, e cresceram, podem andar pelas próprias pernas, e o melhor que a filosofia faz é desaparecer como tecnologia obsoleta. A Nave fez o Baile Esquema Novo (e parte do pós-axé) surgir; no entanto, como uma festa que é a cara do anti-axezismo, está pra lá de obsoleta e ultrapassada. Me lembra, às vezes, Feira de Santana.
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