A Ponte da Discórdia
Nas últimas duas semanas, uma parafernália intelectual resolveu atacar o anteprojeto, ainda a ser discutido, da Ponte que ligaria o bairro do Comércio, em Salvador, à Ilha de Itaparica. Embora tal manifesto envolva gente da esquerda orgânica, consequente, e mesmo PTista como Chico Buarque de Holanda, é basicamente formada ou por não-bahianos, ou por bahianos que foram anti-carlistas, mas hoje se colocam contra as políticas mais eficientes do Governo Jaques Wagner – particularmente contra a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Isto é: são, geralmente, os deliróides do Cultura na UTI. Ou ainda gente que, não sendo contra a gestão atual, também não lhe vê maiores méritos ou não sabe difundi-los e analisá-los.
De antemão, deixo claro que também sou contra a Ponte – só que de um ponto de vista apenas metodológico. Questiono se o formato “Ponte” é o melhor. Em termos de princípios que regem o projeto, sou a favor: é preciso haver uma entrada de cargas para Salvador que não passe pelo norte da península e por Feira de Santana; e é preciso fazer algo para retrair a cidade para seu Centro Expandido, e criar uma ocupacão residencial da Baía de Todos os Santos e do Bairro do Comércio. Demanda que já apareceu há 50 anos atrás, na célebre tese de Milton Santos, O Centro da Cidade de Salvador. Alguém dos do-contra, um João Ubaldo Ribeiro por exemplo, chamaria Milton Santos de “sacerdote de Mamon” ou de “apoiador da especulação imobiliária”?
Senão vejamos abaixo os principais argumentos que tenho ouvido e lido, desde intelectuais até por parte do povão:
1) O metrô não ficou pronto até hoje. A Ponte seria mais uma obra faraônica e interminável, e inútil para a cidade
Há aqui uma confusão entre atribuições de esferas de governo. O Governo da Bahia tem desde a gestão de Paulo Souto entregado obras vultuosas em prazo previsto; na gestão atual, mais ainda: o Complexo Viário 2 de Julho, no Aeroporto de Salvador, ficou pronto em 11 meses quando a previsão eram 12, e gastando menos do que o previsto. A Via Expressa de Todos os Santos, entre a BR324 e a Avenida Oscar Pontes, passando pela Rótula do Abacaxi, tudo indica que seguirá o mesmo rumo.
Já o metrô é uma obra municipal, e o município de Salvador tem históricas dificuldades de concluir obra físicas (quantos pilotis de passarela, sem passarela em cima, existem desde as gestões de Mario Kértzs e Fernando José?) – especialmente nas administrações Imbassahy e João Henrique – piorando sensivelmente nesta última. E obra rigorosamente inútil: feita num trecho perfeitamente bicicletável, onde antes havia uma via exclusiva de ônibus. Sendo que deslocamentos horizontais em massa já são de si inúteis numa cidade que é vertical, e cujo padrão histórico de mobilidade foram elevadores urbanos, ascensores e planos-inclinados.
Sobre a utilidade da obra, por ser Estado não visa apenas ou principalmente a Capital. Tal como o Complexo 2 de Julho visava as saídas para a BR e a Linha Verde, e a Nova Rótula do Abacaxi pode até melhorar o tráfego no Centro de Salvador – mas visa o escoamento de produção do noroeste do estado via Porto de Salvador.
A Ponte é o mesmo: ela serve para dar acesso ao Sul de Salvador. Todas as entradas da cidade ficam fora da cidade, hoje, no Acesso Norte. Aliás, errôneamente abarrotado de moradias de classe média. Não há entrada de cargas e gente para a capital, via terrestre, que não seja através de Feira de Santana – mesmo se se vem do extremo-sul! E não há nenhum vetor consistente que impeça a ocupação desordenada com moradia da zona “ao norte do Rio Vermelho” – de longe a mais problemática em termos de tráfego. A Ponte incentivaria a ocupação não apenas da Ilha, como de toda Cidade Baixa e dos bairros das Costas da Cidade (Nazaré, Lapinha, Barbalho – hoje sub-ocupados e sem nenhuma construção residencial nova a pelo menos duas décadas)
2) A ponte pode aumentar a predação e depredação da Ilha, sua marginalidade e violência, e ainda trazê-la para Salvador
Ou, ao contrário, pode diminuir e melhorar estes dados. A Ponte em si não quer dizer nada.
Quando se iniciou a duplicação da Linha Verde, se dizia que a Reserva da Sapiranga ia acabar, que Praia do Forte ia virar um favelão como Morro de São Paulo (cujo acesso aliás é dificílimo até hoje – sinal de que facilidade de mobilidade não causa necessariamente deterioração, nem isolamento geográfico é fator obrigatório de paz), etc.
Praia do Forte é modelo internacional de capitalismo com distribuição de renda, estimulo a pequenas empresas locais de alto padrão de luxo (ao invés de mega-hoteis de rede internacional), e de preservação ambiental, inclusive com uma legislação urbana altamente aplicável, aplicada, inteligente e eficiente (basta ver o padrão de sombreamento vegetal que há lá). Com altas inversões públicas no município de Mata de São João – onde há a melhor educação pública municipal do estado!
A Praia de Imbassaí, logo ao norte, e Diogo, seguem por caminho similar, de turismo rústico mas com alta infraestrutura e presença reguladora ostensiva do poder público.
Ou seja: o que poderia ser uma desgraça (a Linha Verde), virou uma dádiva. Como? Perguntem ao Prefeito João Gualberto, homem de direita do Partido Progressista (PP), mas inteligente e hábil. Que agora dá um passo adiante e cria imposto municipal específico sobre exploração turística – como Cannes, na França, e Paraty, no Rio de Janeiro, têm.
O que quero dizer? Que a Ponte pode transformar a Ilha de Itaparica numa região metropolitana interessante, polivalente, lucrativa – ou num favelão. Depende da visão e capacidade principalmente de seus prefeitos. A situação política da Ilha é do mais atroz coronelismo roceiro e jeca. Mas, isso pode mudar. Se Mata de São João conseguiu, por que João Ubaldo subestima seu povo e sua terra natal?!
3) Essa Ponte é pura especulação imobiliária pra fazer Caixa Dois de campanha
Pode ser. Mas e as tramóias de João Henrique relativas a vias exclusivas de ônibus? São menos?
Não estou com isso defendendo o rouba-mas-faz. O que há é que ninguém questiona se a oposição à Ponte também não é pura especulação imobiliária.
Senão vejamos: os terrenos ao redor das duas entradas da futura Ponte já têm dono, e quase sempre ocupação e construção. Muito dos imóveis têm tombamento patrimonial ou ambiental.
Por outro lado, o pânico mal disfarçado das empreiteiras que compraram terrenos na Paralela para fazer condomínios fechados carro-dependentes com 50 itens de lazer é patente! Se se constroi uma Ponte ligando a Itaparica, e se tudo correr bem, os imóveis e a ocupação residencial da área do Iguatemi-Paralela vão despencar! E os verdadeiros especuladores, que fizeram farra por décadas, vão perder dinheiro – muito dinheiro.
Fora o fato de que com isso, finalmente a cidade pode recuperar sua identidade barroca, reatar seus laços perdidos com o Recôncavo, e diminuir o uso de automóveis, já que re-ocupará seu Centro – acabando com esta falácia de “Salvador não tem pra onde crescer senão para o Norte”, e deixando de ser uma Feira de Santana com vista pro mar.
É isso: a Ponte é a primeira, e até agora única, medida a impedir a Sa(n)tanização de Salvador! Ela é uma tentativa, prática, de desfazer a falácia de que “Salvador só pode crescer na Paralela”. Ela pode sim crescer na Baía: para isso, precisa interligar massivamente. Ponte neles!
Ainda sobre Caixa Dois de campanha: a intelectualidade bahiana não levantou a voz contra a Demolição da Fonte Nova. Isto sim, uma agressão ao patrimônio intelectual da cidade (mestre Diógenes Rebouças), francamente desnecessária (uma reforma deixaria o Estádio “nos trinques”), e por puro interesse de uma duvidosa instituição internacional: a FIFA.
A mesma galera que não acha nada demais demolir a obra-prima de um dos maiores arquitetos do Brasil (ainda que seja para reconstruir igualzinha depois), esperneia com uma Ponte que pode nos salvar da Sa(n)tanização. Quem acha que vou fazer coro com isso, pode tirar seu jegue da Lavagem do Bonfim…
4) A mobilidade para a Ilha e o Recôncavo pode ser garantida com outros meios, como barco e trem
Concordo, mas desde quando a Ponte impede isso?
A Ponte em si, repito, não quer dizer nada, e o Governador já disse que quer discutir alentadamente o projeto. Se a Ponte priorizar o automóvel individual, será um erro. Mas, e se ela tiver uma ciclovia segregada? São 12km, trecho bicicletável que, no pedal, se realiza confortavelmente em 30min. A pessoa pode morar em Amoreiras e trabalhar no Pelourinho, se quiser. Levará não mais do que 1h no trajeto – bem menos do que se morasse no Imbuí…
E se priorizar digamos, das três pistas de cada sentido, duas pra carga e transporte coletivo?
Fora que isso implicaria em aumentar a concorrência da hoje monopolista TWB, que gere o privatizado Sistema Ferry-Boat.
João Ubaldo comparou Salvador-Ilha com Veneza e Murano. Comparação tão atroz quanto dizer que Recife parece a cidade italiana, e não Amsterdã com seus inúmeros canais e rios e pontes e seu recorte holandês.
Salvador tem uma anatomia muitíssimo específica. Que só encontra similaridade com SanFrancisco e Lisboa, e um pouco com o Rio de Janeiro. A Ponte Rio-Niterói nada tem a ver com a de Itaparica, já que na época que foi feita ligava a capital do Estado da Guanabara (Rio de Janeiro) a capital do Rio de Janeiro (Niterói). Mas em SanFrancisco há uma ponte proporcionando ocupação residencial da Baía de Golden Gate há 150 anos! Em Florianópolis, no Brasil, também. E na mais portuguesa das províncias espanholas, a Galícia (e a Bahia é a maior colônia galega do mundo!), há belas pontes de Santiago Calatrava ligando grandes cidades. Pode Salvador abrir mão disso? Ou deve ela assumir-se como a SanFrancisco dos trópicos, tal como Recife se assume a Roterdã Mameluca?
Pra mim, é prioridade que volte a existir trem urbano até Alagoinhas, catamarã até Cachoeira e Maragogipe (substituindo os antigos vapores), e saveiros para Vera Cruz. Tudo isso pode ser, contudo, conciliado e estimulado pela Ponte.
A questão portanto não é ser contra a Ponte. Metodologicamente, eu sou contra; epistêmicamente, sou a favor. Porém, sou veementemente contra ao modo com que se tem oposto ao projeto, e ao conglomerado de caducos e neo-carlistas que fazem coro com isso.
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