Lá vai o Ilê, descendo a ladeira
A notícia não é nova, mas vale a pena comentar. Afinal, também de marchas-a-ré o pós-axezismo é feito. Refiro-me a idéia meio idiota de o Ilê Ayê criar um “bloco alternativo” (existe algo mais demodé?) pra branco sair. Veja abaixo:
No carnaval de 2010 de Salvador será possível ver foliões de pele clara cantando “eu sou Ilê”, como prega a letra de “O mais belo dos belos”, um dos hinos do tradicional bloco Ilê Aiyê. É que ele, até então considerado o mais negro dos blocos afros, que não aceitava brancos entre os seus associados – diferentemente de outras agremiações, como os Filhos de Gandhy -, começa a abrir espaço para esse público.
O primeiro passo será dado no desfile da quinta-feira de Carnaval, dia da abertura oficial da festa na capital baiana, quando o Ilê colocará no circuito Barra/Ondina o bloco Eu Também Sou Ilê. A confirmação é do próprio presidente da entidade, Antonio Carlos dos Santos.
Em plena crise e superação do Axe-Sistem, o bloco afro que mais resistiu ao mesmo sucumbe tardiamente a um modelo moribundo. Senão, vejamos.
Alguns outros bloco afro adotaram o padrão “bloco de abadá” na virada dos anos 1990 pros 2000 (o auge do Axezismo); o Araketu talvez seja o exemplo mais notório. Outra uma entidade de cultura afro-bahiana legítima e respeitada, o Araketu se desvirtuou ao ponto de hoje não ser nada: sequer um bloco de axé-music. A queda era tão notável, mesmo quando a entidade, rebatizada de “Ara” apenas, tinha fama e era cara, que a própria fantasia do bloco fica perdida entre o convencionalismo burguês e o africanismo folclórico. Autenticidade passou longe, e deu adeus.
O Filhos de Gandhy sempre teve brancos. Dos anos 1990 pra cá mais, porque os mauricinhos querem “beijar mulé” (ou, às vezes homens). Mas o clima do bloco continua o mesmo: densidade mística no Padê de Exú no Pelourinho (que agitava mesmo quando o Pelô não tinha carnaval – aliás, artificialíssimo!), e lascivia máscula e polígama no resto do percurso (como soe de ser a um bloco que homenagem no turbante Xangô Agodô, rei com três esposas), além da constante disseminaçnao de paz, alfazema, e colares de contas.
Talvez o Gandhy consiga isso por ser o “candomblé nas ruas”. O Ilê também é ligado a um terreiro (o Jitolú, na Liberdade), só que a identidade negra é mais importante do que a yorubá neste caso – no Gandhy é o oposto. Contudo, não por acaso tal decisão do “bloco alternativo pra branco sair no Ilê” se deu após a morte de Mãe Hilda, do supracitado Ilê Axé do Barro-Preto do Curuzú.
Qual o grande momento do Ilê. Não é na avenida, quando está majestosamente belo, e sim enquanto sobe meio desordenadamente a Ladeir do Curuzu até a Lapinha, formando o mais intenso circuito de bairro de Salvador, na madrugada de sábado para domingo de Carnaval. É lá que o “coral negro” se forma, com o maior bairro de ex-escravos do hemisfério sul cantando junto nas ruas, nas varandas, nas janelas, nas sacadas. De bebês de colo a senhoras centenárias.
É isso que os brancos vão ver. Os que realmente amam o Ilê. A paulistada abadazeira nem sabe o que é o Ilê Ayê! – não pagaria pra sair num tal “bloco alternativo na Barra”. E, se souber, é tão racista e mauriçáica que desvirtuará 25 anos de glória, que não são 25 dias nesta trajetória – como diz o hino “Não me pegue não, me deixe a vontade”.
Outro bloco que pensou em enveredar pelo industrialismo axezeiro foi o Muzenza. Mas ficou indeciso, e depois recuou. Com isso, patinou por quase uma década, quase desaparece, e só agora, com o programa Carnaval Ouro Negro, da Secretaria de Cultura do Estado, está ressurgindo.
Donde só posso pensar que, como há o Ouro Negro, falta de verba pra manter o Ilê, que nem finalidade lucrativa tem, não deve ser. Me parece mais uma ambição pessoal – sem a mínima leitura do contexto histórico atual, levando este verdadeiro patrimônio bahiano a optar por um modelo que já se mostrou votado a falência e a espoliação, especialmente da população negra cá da Reconvexa.