A cidade obra de arte – a cidade que se esconde
(acima: Barcos fazem a travessia do subúrbio ferroviário para a Cidade Baixa, em 10min a 50 centavos a passagem. Grande solução de mobilidade para uma cidade que fica dentro da maior baía do planeta. E a vista, dos dois lados, é linda de morrer…)
Relações possíveis & impossíveis entre um plano cicloviário e a barroquíssima Capital Reconvexa da Diáspora*
Até agora, todos os comentários feitos aqui dizem respeito das dificuldades de implementar um uso mais ostensivo de bicicletas como meio de transporte em Salvador: suas condições topográficas, históricas e demo-econômicas. Não obstante, há pelo menos uma grande – e insubstituível – vantagem do uso deste modal na SanFrancisco Nagô.
Salvador, como o Rio de Janeiro, é tida como cidade obra-de-arte: uma cidade construída para retirar de si o máximo efeito estético. Contudo, ela não faz isso da mesma forma que o Rio. Na capital fluminense, de caráter neoclássico, toda a beleza está a nú, em proporções monumentais: montanhas, avenidas, palácios. Já Salvador, barroca, é uma “cidade lacrada”: sua beleza está na surpresa arquitetônica de, por exemplo, entrever o mar entre um forte e uma igreja. Está nas brechas que a cidade, eclesiástica e militar, deixa escapar.
Na prática, a cidade pulula de obras visuais, como os painéis de Carybé e Bel Borba, os gradis de Calazans Neto, as esculturas de Mário Cravo, os prédios de Diógenes Rebouças. Obras monumentais que estão em sítios e ruas muito estreitos. A monumentalidade barroca exigiria naturalmente um distanciamento para enxergá-la, o que em Salvador é impossível, e daí ela ser superlativamente barroca. A pé, as informações são excessivas, e se fica cego de tanto vê-las; de carro, sem poder ver o céu acima das cabeças, e um tanto rápido demais, perde-se informações.
É no ritmo suave e constante da bike, mais rápido do que o pedestre mais menos do que o carro, com céu aberto acima, que se pode apreciar e descobrir esta cidade que se fecha e se esconde – que como a Roma de Felinni, não se abre facilmente. Se boa parte da vida lendária de Salvador está nas ladeiras (intransponíveis mesmo de carro, e para as quais se criou bondes, elevadores e planos-inclinados), ela está também nos becos.
Lembro duas passagens minhas pessoais em que isto ficou claro. Uma, de carro, quando estacionei num belvedere acima da Ladeira da Independêcia, em Nazaré, e ao soltar do automóvel percebi que o olhar atravessava com tranquilidade dois vales (Nazaré e Barroquinha), e ia descansar direto no frontão da Igreja dos Jesuítas (atual Basílica) no Pelourinho, que repontava alí como uma inopinada rosa.
Outra, mais recente, quando pedalando pelo Dique do Tororó (onde há pedalinhos aquáticos, e onde aliás se dispunha de um transporte fluvial por barco, tal como a travessia Ribeira-Plataforma pode ser hoje feita por barco a R$ 00,50 em menos de dez minutos. E talvez seja o transporte por barco uma das grandes soluções de mobilidade ainda por se implantar em Salvador), pude ter a sensação clara dos Orixás de Tati Moreno dançarem, e pude captar a monumentalidade vazada do Estádio da Fonte Nova – de onde a distância, e em movimento suave, se tem a impressão que as águas do dique brotam.
Estas vilosidades vaginais (alguém já disse que esta cidade é úmida, quente e sensual como uma vulva) se perdem sem a bicicleta, que permite desvios rápidos de rota. Como certo dia, saindo da Sala Walter da Silveira de cinema, nos Barris, passei pelo Rio Vermelho – para descobrir, sem prévio aviso, o Bando Virado No Móhi de Cuentro tocando um forrozinho a beira-mar, em pleno dia de semana. Se fosse de carro, provavelmente eu não poderia parar para ver por falta de vaga, ou por cansaço.
* texto feito em colaboração ao blog da ONG Transporte Ativo
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