Um Réquiem para o Bar Marquês
Para os que frequentaram em algum momento o já legendário Bar Marquês, na Barra, esta foto deve ser cruel como uma amputação. No lugar onde aparece a presença-da-ausência em tijolos de parede, havia uma foto pra lá de ambígua do fim do século XIX, em que um aristocrata do Segundo Império aliciava um menino que comia banana. Nada poderia ser mais cínico, inteligente e arrojado.
Por ora, a Avenida Marquês de Caravelas não terá mais esta deliciosa auto-ironia. O Marquês vai fechar. Marcou época, embora só tenha durado dois anos. Não apenas implodia o conceito de gueto-gay, como elevou seu patamar de qualidade; foi, sediando o Trilha Sonora, um dos melhores palcos da cidade. Mais do que uma casa noturna: era um conceito, um estilo, uma assinatura. Algo como foi o Quixabeira nos anos de resistência ao axezismo, mas de modo distinto.
O Quixa (carinhosamente apelidado, de forma espontânea, pelos íntimos) ficava nos Barris, em frente a outro bunker: a Sala Walter da Silveira de cinema. Com gradil de Carybé, cardápio do agreste bahiano (Feira de Santana, como caldo de banana verde com carne de bode), café-da-noite aos domingos com cuscuz de tapioca cozido, acaçá, e outros quitutes. Um cobiçadíssimo chorinho às quintas-feiras. Apesar de enorme, lotava todo santo dia – já que os Barris, central e acima da Estação da Lapa, é de acesso relativamente fácil. Fechou porque seu dono foi assassinado por um michê, em casa, no Carnaval. E até que o Beco da Rosália e o Marquês abrissem, Salvador levou um par de anos órfã.
Se a Rosália cumpre a função de ser barato, eclético, e “nos Barris”, o Marquês herdou o legado de luxo e sofisticação despojada do velho Quixa. São filhos diletos, e opostos, de uma era. É comum na noite não-óbvia (não gosto do termo alternativo) de Salvador ainda hoje se ouvir “no tempo do Quixabeira era assim…” – mesmo por gente que é jovem demais para o ter frequentado.
O Marquês fecha por outro motivos. Beto, um dos donos, me dizia que a casa só enchia de quinta-feira a sábado. Nos outros dias, era preciso haver programação específica – de teatro, por exemplo. O que não era problema. O problema é que, não sendo no centrão (como o Quixa e a Rosália, nos Barris), as pessoas não saem a noite dia de semana.
Há quem diga que por conta de uma mentalidade provinciana. Eu concordaria, há alguns anos. Hoje, creio que por um motivo material e prático: a tenebrosa mobilidade urbana de Salvador. A pessoa mora na Pituba. Leva mais de uma hora pra chegar do trabalho, num percurso de menos de 12km. Chega e até quer sair pra tomar uma num lugar transado – o Marquês! – mas fica relativamente longe, e o cansaço aliado ao temor de outro engarrafamento a faz desistir. Ônibus para a Barra é relativamente fácil e frequente a partir de qualquer bairro – mas deixam de existir às 23h.
Daí minha militância recente pela mobilidade urbana, e em soluções individuais (e aliás tão neo-ArtNouveau quanto o Marquês: bicicletas), inclusive usando uma aba desta página toda segunda-feira. Sem uma mobilidade decente, o pós-axé estancará (já estancou?), ou pode mesmo retroagir. Percebi isso quando fui inquirido a respeito do futuro do pós-axé numa entrevista que dei para uma monografia de graduação recentemente.
A Beto e a Moreno, infinitos parabéns pela audácia e competência. A Uzias, negão lindo e tímido que trabalhava na entrada (e aliás, ia trabalhar de bike), saudades imensas. E a todos, esperanças infindáveis de um retorno – já que, a princípio, o fechamento é apenas para reformar o casarão (cujo dono é arquiteto e promete preservar a lógica Art-Nouveau que lhe é toda própria).
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