A Sé de Wagner pode não cheirar bem
Tem me consternado a idéia completamente idiota do Governo Estadual de demolir o Estádio Octávio Mangabeira (Fonte Nova), para construir outro no lugar nos moldes em que a Federação Internacional de Futebol (FIFA) exige.
A idéia soa especialmente imbecil porque ela vem no bojo e dois mares de inteligentes acertos: o levantamento e tombamento do patrimônio modernista da Bahia, pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC); e pela agilidade, e preços progressivamente menores, que se tem conseguido nas grandes obras de infraestrutura estadual, como por exemplo o Complexo Viário 2 de Julho – terminado quase um mês antes do previsto, e com um gasto 10% menor do que o orçado.
Primeiramente, há o discurso de que a estrutura da Fonte Nova está condenada. Mentira: não está. Se diz isso desde o trágico acidente, em 2007 – crônica aliás de uma morte anunciada: não se dava manutenção predial no estádio desde o Governo Waldyr Pires. O desabamento se deu pela fragilidade dos assoalhos – hoje com 5cm de espessura, quando deveriam ter no mínimo 10cm. As colunas, vigas, e fundações estão, segundo consta, em perfeito estado de segurança. Isto é: com uma reforma relativamente barata, se pode deixar a Fonte Nova, em bom bahianês, nos trinques.
Ocorre que, derrubando, vai-se descobrir o óbvio: que embaixo dela é brejo. O que não vai estar previsto no projeto de reconstrução. E aí, tome-lhe dinheiro e concessões a especulação imobiliária para se fazer fundações em ferro por dentro do pântano. O que pode atrasar a obra infinitamente, e vira um poço sem fundo de dinheiro – algo como o eterno metrô de Salvador.
Por fim, a Fonte Nova é um dos mais belos estádios do mundo. Único cuja arquibancada não forma 360º fechados, tendo uma brecha de 30º de vista para o Dique do Tororó e para o Vale dos Barris, e por onde entra a brisa que segue, pelo Chame-Chame, desde a Baía de Todos os Santos. Quem pensou isso foi um dos pais fundadores da arquitetura modernista no Brasil: o baiano Diógenes Rebouças.
Num diálogo com Getúlio Vargas, relatado em um livro seu, Oscar Niemeyer diz ao ex-presidente que ainda bem não ter sido ele a fazer o Maracanã – e sim Alfonso Eduardo Reidi. A concepção de Niemeyer preconizava um estádio aberto e vazado (como a Fonte), o que levaria às torcidas não se olharem – o que seria estúpido.
Pois bem: Diógenes contraria esse preceito. Faz um estádio que, vazado, não impede que as torcidas se olhem; que em belos pilotis em V, permite que a brisa entre e que se tenha uma visão panorâmica, estética, e barroca dos então novos bairros de Nazaré e Barra. E que, de enorme volumetria, “suma” nas encostas das colinas do Campo da Pólvora, como mais tarde João Filgueiras Lima, o Lelé, faria nas encostas do Tororó com a genial (e mal-cuidada) Estação da Lapa.
Diógenes é o mestre da relação estético-funcional prédio-cidade. No Rio, o prefeito (PFLista! – mas há PFListas que compreendam cidades e se opõe a especulação imobiliária: Jaime Lerner, por exemplo) César Maia, se negou a demolir o Maracanã, como pedia a FIFA, e fez outro estádio – o Engenhão. O Rio de Janeiro só ganhou com isso. Em Belo Horizonte, o tombado Mineirão, do vencedor do Prêmio Pritzker, Paulo Mendes da Rocha, será modernizado – mas mantendo a estrutura brutalista do seu autor. A Bahia corre o risco de perder um dos mais belos estádios do mundo – quando tem a grande chance de relembrar a si e ao Brasil os grandes arquitetos autorais (como Diógenes) que produziu, e que vivem no ostracismo da memória.
Por fim, uma arena como a FIFA quer seria uni-funcional. A Fonte Nova é multi. Fica no centro do centro de Salvador. Imagine-se uma arena uni-funcional alí: seria um monumento a unutilidade e ao não-uso urbano. E mais: a memória do Esporte Clube Bahia está viceralmente ligada ao Estádio Octávio Mangabeira. Como todos sabem, não gosto de futebol – mas é inegável até para tocerdores do Vitória o patrimônio imaterial que o E.C.Bahia representa pra nação: não há torcida mais fiel, e é uma das maiores do país. Vale lembrar também, como diz Juca Kfouri, que os paises de primeiro mundo (ou centrais) não se acorrem tão assodadamente para cumprir as exigências da FIFA: os Estados Unidos sediaram uma Copa, por exemplo, com grama sintética; e que o Brasil é hoje a 6ª economia do mundo, e o mais importante ente diplomático do hemisfério sul. Ou seja: devia dar-se ao respeito, e ficar menos subserviente a um duvidoso órgão internacional.
Wagner, que se identifica tanto com Balbino, o próprio Mangabeira e Luís Viana Filho, pode com isso parecer muito o J. J. Seabra que demole a única catedral renascentista fora da Europa – a Sé Velha – pra passar bonde; e hoje, nem bonde nem Sé, a praça de mesmo nome é um trambolho urbano. Seabra foi o último estertor da República Velha em Salvador.
Tal medida, se levada a cabo, me cheira, em tudo e por tudo, a caixa dois de campanha. O que é incongruente com o único PTista a se opor abertamente a esta prática, e a falar com clareza sobre (e contra!) o mensalão.
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