Da generosidade lida como boçalidade
Tenho evitado, por parcimônias éticas, falar da recente cisma na banda O Círculo, mas certas posturas disseminadas aqui em comentário, e outras alhures, me fazem dar um passo a mais na quebra do silêncio.
As posturas são basicamente duas: uma, dos que vêm em Pedro Pondé (hoje ex-vocalista, e criador, d’O Círculo) alguém que beira o genial, contudo individualista e boçal; outros, que dizem que O Círculo não representou nenhuma qualidade especial no rock bahiano, antes foi pusilânime e “se rendeu ao axezismo”.
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Essa crítica vem, geralmente, de gente que aprecia a decana banda Cascadura – que merece todos os louros por ter resistido bravamente aos duros anos do axezismo e chegado até aqui. E que merece algumas críticas: primeiro, esteticamente era não mais do que um hard-rock cru, às vezes sequer correto – muito aquém do Dead Billies, por exemplo, que hoje virou a mítica Retrofoguetes. Recentemente aderiu a produção de canções mais melódicas – o que me parece um ganho estétic0, mas com óbvio interesse de ser tocável em rádio e de angariar um público que não seria deles se se mantivessem xiitas.
Até aí, nenhum problema. Só que estes mesmos autores dizem que “o público do axé não me interessa” – o que é, no mínimo, uma denegação. Suas idéias não correspondem a seus fatos.
O Círculo fez exatamente o mesmo movimento, desde sempre. Sem no entanto optar por melodias e letras fáceis. Ao contrário: beiram o barroco com seu misto de fúria e culpa, amor terno e voracidade. Era feita de instrumentistas exímios cada um em seu instrumento – inclusive a voz. E nunca pretenderam disputar público com o axé-music – mas suportavam bem que seu próprio público fosse também do Cheiro de Amor.
Enfim, no que se diz haver pusilanimidade estética, há uma visada consistente da realidade de então, da atual e da que se delinearia futuramente. Tanto assim que O Círculo deu frutos – os outros de antes, que frutos deu? Nem mesmo o genial Retrofoguetes deixa herdeiros…
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Sobre Pondé, por uma (in)feliz coincidência o entrevistei para a série comemorativa de um ano deste blog (A Ressurreição da Canção, que sai a partir de agosto até dezembro) nas vésperas da ruptura. A questão foi tema de conversa naquele momento, e alguns dias depois novamente. O tema não me interessava para a entrevista que realizei (cujo tema é a canção como forma musical) e não explicitarei nada aqui do que ali se conversou – nem hoje nem em momento algum.
Contudo ficam algumas impressões. Ninguém nega que a recente ruptura é, de certo modo, uma repetição de rupturas anteriores. Como o próprio Pondé diz, ele tem uma postura radical por vezes (“Meu temperamento tem um pouco de pimenta / nem todo mundo gosta / nem todo mundo aguenta” – no seu twitter, pra quem quiser ver). Nem por isso incapaz de diálogo.
Antes o contrário: a concepção de uma banda que abrisse diálogo com outros estilos (axé, samba, rap), sem abrir mão do seu próprio e sem se render jamais a questões mercadológicas, foi dele. Parte considerável das composições também. E nada disso foi sem efeito: sucesso rápido, consistente e profícuo. Tanto que gera querela mesmo agora.
Mais: Taciano é um guitarrista trágico que nos melhores momentos lembra Clapton e Gilmour – e que antes de O Círculo não conseguia sair de seu casulo de timidez. Por que? E a quem se pode atribuir esse passo adiante, de modo que a guitarra dialogava com a voz de Pedro em quase todas as músicas, de modo quase cênico?
O que se vê é uma generosidade sendo lida, pelas lentes da invídia, como boçalidade. O excelente conto Nada e a Nossa Condição (em Primeiras Estórias), de João Guimarães Rosa, trata justamente disso. Feito por encomenda da União Nacional dos Estudantes (UNE) sob o tema da reforma agrária, Rosa narra a estória de um latifundiário que doa todas as suas terras para seus empregados – que passam por isso a ver nele um tirano boçal, e não um sujeito pródigo de amor material a seus semelhantes biológicos. Conclusão: pode-se dar tudo – menos a generosidade enquanto tal.
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Reitero que não são minhas impressões apenas, mas a de muita gente que conta e faz a diferença. E que ainda que o que se diz fosse verdade, foi grosseiro e sem ética a condução das coisas nos últimos tempos. E que a boçalidade não lhe é um defeito exclusivo – permeava outros integrantes também, talvez mais e de modo mais sorrateiro. E principalmente, nada disso é motivo para deixar de reconhecer nele (e n’O Círculo) uma posição estratégica, e um autor invejável e invejado.
Se boçalidade fosse um defeito autoral execrável, e em nada ligado a generosidade, Stanley Kubrick seria o pior cineasta do mundo – e não é o caso. Glauber Rocha era um boçal assumido, alguém recriminaria? E quem fez mais pelo cinema brasileiro, enquanto mecanismo de fomento (criou a Embrafilme), do que ele? Certos sujeitos têm direito, e até dever, de serem arrogantes: é um modo de generosamente espanar a poeira da mediocridade pra longe!
Talvez Pondé (e O Círculo inteiro) se encaixe nessa tradição do barroco-revoltado e de alta penetração social popular, que remonta a Padre Vieira, Gregório, Castro Alves, e chega até Glauber. O que nos faz voltar a questão anterior: têm muito mais legitimidade estética esta banda do que todos que invidiosamente a criticam.
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Gostaria de deixar claro mais uma vez que não busco responsáveis; e que a questão sucita uma análise mais acurada da economia política da industria musical cá na Diaspórica (que farei, quando a poeira baixar). E que, explicitamente, deixo minha mão estendida a Daniel, Taciano, Israel e quem mais a queira – inclusive para uma futura reconciliação (que acho possível e mesmo provável) se assim me quiserem como mediador.