Recife & o anti-axezismo

19/07/2009 at 19:13

Um problema que passou a se colocar com o fim do carlismo e o advento do pós-axezismo é a ambivalente relação da Bahia com Pernambuco. Não é uma relação de mera oposição (ao contrário do que se diz, não é uma relação Rio de Janeiro X São Paulo), nem de simples parceria. E vai nisso motivos históricos e geográficos.

Pernambuco é um estado do que poderiamos chamar “Nordeste franco” (no sentido que em psiquiatria fala-se de mania franca, para diferenciar a mania clínica e a hipomania). João Cabral de Melo Neto, num poema de Agrestes chamado Conversas em Londres 1952 diz:

3.

“E o Nordeste onde está no esquema?”

“Vejamos: não é só colônia;

é uma colônia com o especial

que à colônia dá ter história;

#

é a colônia condecorada,

que se deve dizer ‘da Coroa’,

principalmente Pernambuco,

onde, pelo que me diz, toda

#

coisa começou: e que você

não separa do que é Nordeste

(aliás, por que estados tão grandes?

por que só dividiram estes?)

A Bahia faz, nesta lógica, parte dos “estados tão grandes”, e não dos retalhados: Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará – que formam o “Nordeste franco”, porque o Maranhão já é região amazônica, além de ser o segundo maior estado da Região, menor apenas que a Bahia. Bahia aliás compunha, até a reforma de 1967 (dentro do Golpe), a região Leste, junto com Minas, Rio e Espírito Santo.

Nem a Bahia faz parte dos “da Coroa” por isolamento. Primeiro, por ter sediado a capital do país por uma vez, e quase por duas. Depois, porque como Minas, Rio, Sampa, participou de todos os ciclos econômicos – e não apenas do canavieiro. Inclusive há ciclos quase exclusivamente bahianos: o do cacau, o do fumo e algodão (partilhado com o Maranhão). Em consequência, por nunca ter tomado parte de revoltas separatistas. Ao contrário, como Minas, suas revoltas sempre tiveram caráter de unificação nacional: as duas Inconfidências são aqui e nas Gerais.

Por outro lado, a Bahia tem a maior quantidade de nordeste (semiárido) entre todos os estados brasileiros. Os outros estados de transição (Maranhão e Minas) têm partes irrisórias de sertão. A Bahia é, fora o litoral, quase toda sertão: em proporções pernambucanas, multiplicadas por dez.

* * *

Recife foi, por mais de uma década, a única capital a resistir bravamente ao axé-sistem – inclusive publicando leis que cerceassem a penetração da axé-music no Carnaval de lá, que toca de rock e rap e frevo e maracatú, mas axé não. E, assim que o pós-axé começou em Salvador, e mesmo antes, suas cabeças mais produtivas nos estenderam a mão: o Cordel do Fogo Encantado, a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, e outros.

A Mauricéia Desvairada, pela proximidade e facilidade de chegar lá (é praticamente ponte aérea Salvador-Recife), foi a válvula de escape para os que não toleravam a Salvador mediocrizada dos anos 90. Isso teve um efeito colateral: de tanto ir a Recife, Salvador criou massa crítica para elaborar um modus-operandi contra o axé-sistem. Essa massa crítica hoje está em boa parte dos que fazem o pós-axé no âmbito privado, mas também na Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

Por outro lado, o pernambucano médio não consegue entender a Bahia. Não identifica Armandinho Macedo como frevo; não compreende que a guitarra elétrica aqui não é importação cultural, nem mesmo antropofagia. E acha que axé-music e samba-reggae é a mesma coisa! E a massa pernambucana, que segue de modo simplificatório a intelectualidade de lá e fala mal da Bahia, é a mesma que consome com avidez acrítica o Chiclete com Banana e as Ivetes Sangalo – e se assustam quando os bahianos que vão a Pernambuco declaram detestar estas figuras.

Porém, se o discurso pernambucano é de que quer ver a Bahia plural e fortalecida como antes, há um temor de que isso signifique hegemonia imperialista regional, como foi durante a Avant-Gard (décadas de 50 a 70) e nos anos do carlismo durante a ditadura. Portanto, na prática interessaria a Pernambuco deixar a Bahia chafurdar no axezismo – enquanto ao norte eles chorariam por nós.

* * *

Esta resistência de Pernambuco à Bahia tem razão de ser. O axe-sistem poderia ter sido (e nada impede que o pós-axé viesse a ser também) a repetição de uma tragédia desse alijamento cultural, que teve seu auge quando ACM deu um golpe e tomou de Pernambuco sua maior coleção de arte sacra: a Abelardo Rodrigues. Resultado: o Estado da Bahia tem dois museus de arte sacra públicos invejáveis – Pernambuco tem meio, o de Olinda.

Se por um lado a retomada, acelerada pelo Governo Wagner, necessitaria da ajuda providencial dos mamelucos da Amsterdã dos trópicos, por outro para isso seria preciso uma distenção e uma ida em socorro a eles também. A Bahia precisaria aumentar sua presença na região sem com isso ser ou parecer hegemônica – algo como o Brasil tem feito nos paises do eixo-sul e especialmente na América Latina. É uma jogada diplomática delicada, e que requer atos concretos.

Eles já vinham sendo feitos na área da cultura (a Passarela da Alegria Pernambuco Bahia, o Música em Todos os Ouvidos) e de infra-estrutura. Agora, um passo grande foi dado: abre-se o primeiro hospital bi-estadual em Juazeiro, dentro do primeiro sistema de saúde bi-estadual do país, na rabada da primeira Univesidade Federal tri-estadual, a do Vale do São Francisco (UNIVASF).

É difícil pra imprensa bahiana compreender a assertividade, cuidado, precisão e visão de longo prazo que o Governador com isso demonstra. É uma desconstrução do carlismo em seus efeitos externos, sobre outros estados, que tem consequências indiretas para dentro do estado. A mídia da SanFrancisco Nagô fica tão perdida quanto a Globo interpretando a política externa de Lula há dois ou três anos. Hoje, a Vênus Platinada desistiu de fazê-lo para evitar o rídiculo.