São Paulo: mergulhando de cabeça no mediocrismo carlista
Uma série de fatos recentes na cidade de São Paulo vêm me confirmar algo que comecei a suspeitar na última visita à cidade, ano passado. A sensação que tenho é que Sampa entra num processo de mediocrização similar, mas não idêntico, àquele do qual Salvador começou a sair há alguns anos.
Primeiro, me veio a sensação de que o que eu amava em Sampa de algum modo se perdeu: sua amplíssima tolerância e real interesse pelo diferente, o exótico. Isso, que o Rio de Janeiro tem em escala nacional, e Salvador em escala inter-atlântica, Sampa tinha em escala mundial! Aliado a isso, uma sensação plena de liberdade – quase táctil, que ia do hábito de perambular até de madrugada, à possibilidade de flertar e puxar conversa com quem bem quisesse.
Essa sensação já não estava lá em abril de 2008. Agora, três fatos ao menos vêm corroborar isso:
1) A invasão do campus da USP. 120% dos bahianos devem ter sentido cheiro de 16 de maio de 2001, ao verem isso;
2) Atentado a bomba no fim da 13ª Parada Gay, domingo agora. 3 milhões de pessoas é o que Salvador tem nas ruas, todo dia, por cinco dias, todo Carnaval. E é seguro! O de Recife, nem tão seguro assim (minha experiência de pipoca da Timbalada em Salvador avisa: algum dia, aquele aglomerado sem saída nem policiamento ostensivo do Galo da Madrugada ainda vai dar merda), não acontece nada parecido. Ora, Parada Gay de Sampa é como Carnaval na Bahia. Houve momentos de descontrole, na festa cá na Diaspórica? Sim, e até de abuso, como a agressão da Polícia Militar aos Filhos de Gandhy, a pedido do Chiclete com Banana, em 2006. Mas nunca a própria população propôs ou executou uma sabotagem sistemática à própria Festa Cívica da cidade – nem se vê violência homofóbica no circuito (e quando há, a PM coibe no ato, que eu já vi);
3) a idéia bizarra de remover a Lôca, que nem rigorosamente boate gay é, da Frei Caneca. A Lôca é um patrimônio de quase 20 anos, exemplo de tolerância inter-tribus, que tem de mauricinho a maconheiro, de travesti a rockeiro lá dentro. E todo mundo se respeita e se diverte. E não faz ruído na rua. Ocupa a rua quando tem fila – mas no Rio Vermelho, em Salvador, também. E ninguém pensa em retirar a Boomerangue, ou a Pirâmide, do Rio Vermelho – nem o mais carlista dos habitantes do bairro.
Olhando assim, parecem fatos isolados. Minha hipótese é que são sistemicamente concatenados, fruto da onda moralista que São Paulo entrou desde 2004. Moralismo principalmente à direita, mas também à esquerda: o que foi a campanha de Marta Suplicy à prefeitura, ano passado, senão moralismo torpe e rastaquera (aliás, indigno dela)?!
Quando chamávamos Salvador de “Capital mundial da mediocridade” diziamos: “amamos Salvador, ela é que não nos ama de volta”. Com isso, não nos referiamos à infra-estrutura (que continua uma bosta), mas à mentalidade: o que de melhor a Bahia tinha – a gentileza, a multiculturalidade, a capacidade criativa ao mesmo tempo erudita e escrachadamente popular – havia se perdido.
O paulistano se encontra hoje na mesma situação: mal-suporta a cidade que diz amar. E não mal-suporta apenas pelo transito, contra o qual pragueja. Certamente o clima envenenado (e não falo da poluição do ar) está insuportável – embora eles não tenham se dado conta disso ainda.
E talvez nunca venham a se dar: não há povo no Brasil mais avesso à auto-crítica e à critica externa do que os paulistanos. Em Salvador, nos criticamos ao limite do masoquismo, e aceitamos quase todo tipo de vitupério que Recife nos enfiava ouvido a dentro (na maior parte das vezes, com razão). Essa foi a formula pra formar uma massa pensante e producente que fizesse ações anti-cíclicas para sairmos do carlo-axezismo. Funcionou, ou tem funcionado (embora isso gere uma necessidade de mudança célere na infra-estrutura – o último bastião da jequice em Salvador é ter de ter carro pra sair de noite…).
Evidente que o processo de re-ascensão soteropolitana, e queda paulista, não acontecem juntos por acaso. Boa parte da mediocridade bahiana era garantida porque a paulistada usava a cidade como se fosse uma “Cuba de Batista” – São Paulo financiava o axezismo, e o carlismo foi uma importação da truculência integral-constitucionalista-de-1932 para um estado em que a política e a inteligentsia sempre foi pautada pela gentileza, de Octávio Mangabeira a Milton Santos.
Não sei se Sampa será capaz de fazer tal mea-culpa – e com isso, é forte candidata para em breve herdar o título que foi de Salvador: “Capital Mundial da Mediocridade”.
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