Artefatos Vitorianos para uso das Cidades – IV

11/06/2012 at 12:54

uma história tecnológica do Amor

Tanto quanto a bicicleta, a sombrinha, o leque, e a literatura, o amor era, no período Rococó palaciano, um jogo lúdico da nobreza – que só depois se torna uma traquitana universal a funcionar, e a fazer funcionar, as metrópoles. É talvez no romance do General Chordelos de Laclos, As Relações Perigosas (verdadeira porta de vai-vem entre o Romantismo e a Idade Clássica, no dizer de Mario Praz), que isso fica mais claro.

Laclos elevou o romance epistolar a um paroxismo: não se trata mais de uma história narrada através de cartas, senão de uma história do envio das mesmas cartas – é um romance epistolar cujo tema são epístolas; e, mais além, as missivas se convertem em cartas de baralho. Se todo o romance anterior ao século XIX era, como diz Ítalo Calvino comentando os Três Contos de Flaubert, “narrativa a cortinas cerradas”, sem imagens ou cenas, Laclos radicaliza isso ao passo que abre frestas: sua estória é encobertas por leques, por mãos de baralhos de bridge, pelo mostra-esconde dos jogos de sedução versalhianos.

“Viaja-se muito nos romances de Sade”, nos diz Roland Barthes – e o mesmo se poderia dizer do General Chordelos; no entanto, nunca se está em uma cidade, rua, praça: todo trânsito se dá de um castelo a outro, de um palácio a outro. Estabelece-se assim, não bem uma des-geografia dos afetos, mas uma geografia de grande escala, fora da escala humana. O amor, fato político, é evento fundamentalmente de alcova, e não de demonstrações públicas de afeto; claro, os bailes e as sonatas de câmara servem para flertar, só que como puro jogo. É justamente quando Relações Perigosas se dobra e começa a se comportar como um romance trágico do Romantismo, que a cidade e a visualidade aparece: o Visconde de Valmont, já apaixonado pela Baronesa de Tourveille (na prática, uma burguesa que comprou o título) é visto pela Marquesa de Merteuil numa carruagem, ao sair da ópera.

Note-se que ainda aí é uma cidade para poucos, e pouco pedestre, carrodependente se diria, só que sem motores. É justamente com o advento da metrópole hausmanniana que o amor deixa de ser uma prerrogativa de classe, e se torna virtualmente um direito universal – sob pena, claro, de ganhar uma função utilitária e deixar de ser jogo, e ser investido de uma coerção panóptica.

O boulevard da Paris de Baudelaire não é apenas o lugar em especial para o flerte, a paquera (como eram os corredores palacianos um século antes), a flanery, mas também para marcar encontros, e ver-se sendo visto em plena felicidade. Mais do que isso, é a presença diversa e densa de comércio de rua que permite ao enamorado comprar flores de última hora, escolher bombons, encomendar um corte de tecido para uma roupa particularmente elegante a ser usada numa situação especialíssima.

Ao sair da condição de brinquedo de alcova & salões para uma prática urbana, o amor é investido de etapismo: da paquera ao namoro ao casamento – torna-se uma máquina de produzir familismo e consumo, com consequente perda de sofisticação – tanto mais sentida quanto mais proletarizada é a classe social que a pratica (para quem também o amor é uma tecnologia mais utilitaria que divertida). E claro que não por acaso é nesta época que a prostituição alcança seu apogeu como arte, as outras formas de relação amorosa (o caso, o affair, o romance) se diversificam antes de morrer (e produzem a narrativa de traição, tão típica do fin-du-siécle, de Eugênia Grandet a Capitu), surge o cinema e o teatro de revista, o circo antes eminentemente agrário passa a ser um entretenimento citadino entre outros (como nos mostra boa parte da obra pictográfica de Edouard Manet e do conde Henri de Toulousse-Lautrec)  etc. Se namorar é um passo para a concentração financeira da casa, burguesa, é também, paradoxalmente, o apogeu da rua em que ocorrerão as Comunas – um ato econômico e financeiro em seu destino, entretanto político em sua origem e forma.

 Não é apenas o amor erótico que muda de forma, e ganha função prática, na cidade moderna (que ainda não é do modernismo). O mesmo vale para a amizade. Recordo que o General Laclos e o Marquês de Sade eram amigos íntimos, discípulos mútuos até – mas se encontraram raras vezes: Chordelos quase sempre na fronteira belga, manejando exércitos, e parte de uma nobreza de espada, Alfonce-Donatien entre castelos e cárceres. Quase todo seu afeto foi desenvolvido em privado – através de epístolas.

Na cidade múltipla e densa que o Prefeito de Paris sob Napoleão III cria, a amizade é um fato público: amigos são aqueles que se embreagam juntos, vão a bórdeis juntos, tomam sol nos parques juntos, discordam politicamente juntos – sua intimidade é colocada a vista de todos, sua afinidade eletiva se torna uma referência física de localização para toda uma coletividade social.

Não é de admirar que a era do automóvel faça das metrópoles, antes lugar da ampliação do amor em escala industrial, regiões cartográficas em que o amor se torna difícil. Claro, isto não vale para qualquer metrópole nem em qualquer canto: morar no Centro de Salvador (e eu sabia disso bem antes de vir para a Gamboa de Cima) exponencializou em quantidade e qualidade meus encontros afetivos, de amores e de amigos, de brigas em praça pública e botecos, de caronas pedestres e de garupas de bicicleta. Porém, em geral o automóvel retoma todos os males do afeto à cortina cerrada (o namorico dentro do carbriolet, agora dentro de carros estacionados em ruas ermas), sem trazer suas vantagens (o fato de ser puramente lúdico e descompromissado). E nada contra namorar dentro do carro – das grandes vantagens de não ter automóvel é cochilar, conversar e dar amasso em táxis. O que há é que o aburguesamento fez a curva, e se um dia foi libertador e universalizante, hoje se torna uma emulação do salão aristocrático, só que sem a galhardia da aristocracia. E o mesmo vale para as amizades que se, por um lado, com o advento da internet voltaram a ser através de cartas e de afinidades profundas, por outra perdeu diversidade e função política íntimo-pública pela raridade de encontros reais e presenciais em espaços verdadeiramente coletivos.